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domingo, 28 de dezembro de 2008

ESTOQUE ESGOTADO



Ele era o que se poderia chamar de autêntico boêmio.
Não havia noite que não encontrasse meia dúzia de amigos e que não fosse para um bar qualquer tomar uns drinques, contar piadas e — por que não? — cantar um sambinha.
Dizia que era feliz assim, que não conseguiria jamais conceber um outro ritmo de vida e que, em resumo, não fora feito para a vida doméstica, para a pacata vida dentro de quatro paredes e de um coração.
Mas, toda araruta tem seu dia de mingau e com Luiz não poderia ser diferente.
Num final de semana, durante uma festa em casa de um de seus muitos amigos, ele a conheceu.
Chamava-se Margarida, era morena, tinha um sorriso encantador e...
Simplesmente o cativou.
Conquistou-o por completo, dominou-o, domou-o, compreendeu-o e, em menos de um mês, lá estavam eles diante do Juiz-de-Paz — com padres e freiras ele não queria histórias — casando-se, constituindo um lar.
Para a turminha de boêmios foi uma perda. Para os proprietários de muitos bares ali na região da Bela Vista, foi uma significativa diminuição na receita pois, seguramente, três quartos do salário de Luiz era sumariamente transformado em uísque e petiscos todos os meses.
E olhe que, como advogado, ele não ganhava pouco!
Mas, amigos que todos eram, por mais falta que dele sentissem, estavam felizes por vê-lo realizado, por vê-lo sorrir satisfeito, quando dizia:
— Agora estou sossegado. Sosseguei o pito, não quero mais saber de farras. Estou contente com o que tenho lá em casa.
Contudo, Vox populi, vox Dei e nada é mais verdadeiro do que aquilo que o povo diz.
E o povo costuma afirmar que pau que nasce torto, não tem jeito, morre torto.
Luiz começou a ficar melancólico.
Era feliz, está certo, sentia-se muito bem em casa, em companhia de sua Margarida mas, não podia escutar uma música de Sílvio Caldas ou de Agostinho dos Santos que logo lhe vinha uma estranha e terrível vontade de chorar, um desejo agudo de se isolar do mundo, de ficar sozinho, recolhido apenas às suas lembranças, às recordações daquela época em que, madrugada alta, ele e os amigos ficavam cantando pelos bares, comendo coxinhas de galinha de aspecto e sabor duvidosos e tomando uísque comprovadamente falsificado.
Não demorou para perceber que o que lhe estava faltando era a boêmia, era o convívio com os amigos, o uísque vagabundo bebido em companhia de vagabundas e ao som desafinado de vozes já bem embotadas pelo excesso de nicotina e álcool.
Mas ele não poderia jamais dizer isso para a Margarida.
Ela não compreenderia e isso ele tinha certeza.
Mesmo porque, ainda na época — muito curta, é verdade — de namoro, ela deixara claro que não era do feitio de admitir que ele se dividisse. Ou ela, ou a boêmia, ele que escolhesse.
E Luiz escolhera Margarida, em um arroubo de romantismo, em um de seus momentos de delírio, quando percebera que, para levá-la à cama, só com uma aliança no dedo.
Agora, três meses passados, as coisas começavam a ficar diferentes.
Segundo Camões, a posse é o funeral do amor e Luiz principiava a acreditar nessas palavras.
Não que tivesse deixado de amar Margarida. Isso, jamais. Ela era dedicada, delicada, apaixonada, um exemplo de esposa e de companheira. Fazia-o feliz todas as noite, deixava-o realizado todos os dias...
Em casa ele era o rei mas, ao mesmo tempo, um infeliz.
Durante mais três meses, consciente de que a boêmia tinha se tornado coisa do passado, que não poderia ser mais do que uma lembrança em sua vida, Luiz lutou consigo mesmo, dominou sua nostalgia, controlou sua melancolia e...
Venceu.
Esqueceu, ou melhor, arquivou em algum canto de sua mente e de seu coração as noitadas de seu tempo de solteiro e passou a se dedicar à casa, ao trabalho, à Margarida.
Até que um dia...
Ele lá estava, no final do expediente, a barriga indecentemente encostada no balcão de um bar da Praça da Sé, o rosto vermelho, redondo e sempre sorridente...
— Carneiro!
— Luiz!
— Vamos tomar um aí!
Era o perigo que se avizinhava...
Luiz olhou o relógio, viu que já passava de seis horas da tarde.
— Vamos, rapaz! — insistiu Carneiro — Tome um uísque! Como nos velhos tempos!
O apelo àquela época foi argumento definitivo.
Luiz não resistiu mais, tomou o primeiro uísque, logo acompanhado do segundo e do terceiro.
A partir desse momento, era outro homem.
Melhor dizendo, era o homem dos outros tempos, alegre, falador, cheio de vontade de descontar o tempo perdido.
Dali, da Praça da Sé, foram caminhando, trilhando a antiga rota, até a Brigadeiro Luiz Antônio, até o Bexiga e seus bares, suas mulheres, sua turma.
Luiz chegou de volta à sua casa, embriagado, segurando uma garrafa com um resto de JB e um problema terrível: como explicar o que acontecera para a sua Margarida?
Esta, os olhos vermelhos pelo choro, o coração aos pulos pelo desespero e a angústia de não saber onde é que estava o marido, esperava-o na porta.
— Querida, você não sabe o que me aconteceu! — disse ele, assim que entrou em casa.
E, antes que Margarida pudesse protestar, ele foi contando a história comprida e complicada de um casamento às pressas de um seu amigo, um velho amigo de infância que, finalmente, tinha tido a mesma sorte que ele, Luiz, e encontrara a outra metade da laranja.
— Você precisava ver, querida —finalizou Luiz — Ele estava tão feliz... Estava com a aparência de um anjo! Acho que estava sentindo o mesmo que eu, no dia em que casamos!
Margarida, ainda inexperiente e ingênua, com o ego devidamente massageado pelas espertas palavras de Luiz, engoliu a história.
Cuidou de sua bebedeira, fez-lhe café, deu-lhe o tradicional conselho:
— Não beba tanto assim, querido... Você não está mais acostumado...
Doce ilusão...
E trágica provocação.
Luiz ficou preocupado com a afirmação da mulher.
— Será que não estou mais acostumado, mesmo? — perguntou-se — Será que estou começando a ficar velho, será que chegou a hora de me aposentar?
Passou três dias com isso na cabeça e, no final do expediente de sexta-feira, resolveu tirar a prova.
Saiu do escritório e, sozinho, foi para a Bela Vista, para aquele barzinho onde tantas e tantas vezes batucara no copo, acompanhando a voz desafinada do Adoniran
Claro que encontrou toda a velha turma que o recebeu cantando/berrando a velha música Boemia...
Voltou para casa madrugada alta e, desta vez, a história que contou para Margarida, foi a de um amigo que, depressivo por ter perdido a mulher em um acidente de trânsito, estava querendo se suicidar.
Margarida, mais uma vez, aceitou a mentira como verdade, tratou do marido, recomendou-lhe que tomasse cuidado com a bebida, com o cigarro e...
Tudo voltou ao normal, à velha rotina de sempre.
De sempre?
Não bem exatamente para o Luiz. Ele recomeçou a frequentar os bares da Bela Vista, a reencontrar os amigos, o uísque e o samba.
Passou a chegar tarde em casa pelo menos três vezes por semana e as desculpas que encontrava eram as mais diversas e estapafúrdias: velórios, clientes na cadeia, execuções criminais, audiências com políticos e homens de negócios que avançavam noite a dentro...
Margarida, no início, aceitava tudo.
Porém, com o tempo, as coisas foram ficando mais difíceis, ela passou a desconfiar, a achar que não era possível o marido trabalhar tanto, lidar com gente tão importante quanto dizia e, no fim do mês, ao invés de mais dinheiro, o que sobrava era apenas uma quantidade maior de dívidas.
Luiz logo percebeu que a esposa estava encontrando dificuldades para engolir o que ele lhe dizia.
Começou a rebuscar mais as desculpas, a enfeitar mais as histórias, partindo do princípio que o absurdo era sempre melhor pois, pelo simples fato de ser absurdo, não admitia qualquer espécie de comprovação.
— Estou voltando de Buenos Aires — disse, certa vez — Tive que ir para lá de manhã, pois um cliente foi preso por estar carregando dois relógios de ouro.
Em uma outra ocasião, com um bafo de matar dinossauro, depois de dois dias e duas noites de ausência, ele contou que estivera em Manaus, também por causa de um cliente que o chamara para resolver uma delicada questão com o IBAMA.
— Ele estava criando jacarés em sua fazenda. Uma criação bem feita, dentro de todos os preceitos e recomendações científicas. Mesmo assim, o IBAMA tascou-lhe uma multa astronômica. Fui lá para quebrar o galho.
Duas semanas depois, após passar o sábado e o domingo enfurnado com duas mulheres em um sítio em Atibaia, ele contou para Margarida que fora a Miami para assessorar um amigo na compra de uma mansão à beira da praia.
— Ele pôs a casa à nossa disposição, querida. Acho que seria uma boa passarmos o Natal lá...
Margarida já nem sorria mais.
Impossibilitada que estava de comprovar ou de contestar os álibis que lhe trazia o marido, ela se limitava a continuar a cumprir o seu papel, continuava a ser uma esposa dedicada e exemplar, permitindo-se apenas o direito de resmungar alguma coisa quando, no final do mês, o dinheiro faltava.
— Não entendo — murmurava — Você trabalha tanto... E continua sem dinheiro, vive sempre com essa miserinha nos bolsos, a nossa conta bancária eternamente no vermelho...
— É a ingratidão das pessoas, querida — dizia Luiz — Não me dão o valor. Não sabem me remunerar de acordo com o meu trabalho!
Até que um dia...
A farra fora maior que das outras vezes.
Luiz estivera durante três dias com sua turma, em uma chácara perto de Campinas, cercado de uísque por todos os lados e com nada menos que três mulheres em sua cama.
Pode-se muito bem imaginar o estado em que voltou para casa.
Um estado que não permitia qualquer explicação, a camisa manchada de batom de várias cores, fios de cabelo ainda presos à roupa, marcas arroxeadas no pescoço e no peito que a camisa, rasgada por unhas afiadas, deixava à mostra.
Ele percebeu a situação em que se encontrava no exato instante em que Margarida abriu a porta de sua casa, dizendo:
— Muito bem, doutor Luiz... Vamos ver que história você vai inventar agora...!
Luiz olhou para a mulher, olhou para si mesmo e, balançando a cabeça, gemeu:
— Não, querida... Dê você uma desculpa... As minhas já se esgotaram todas!

domingo, 21 de dezembro de 2008

UM CASO COMPLICADO


Viúvo havia pouco tempo, ele morava numa casinha na subida que leva à Igreja.
Com pouco mais de sessenta anos, ainda era um homem sacudido e forte, não tinha medo de nenhuma espécie de serviço, enfrentava qualquer empreitada.
Não era rico, nem poderia ser, vivendo naquela cidade miserável, de gente mesquinha e pequena.
Bem ao contrário, lutava com dificuldades, era obrigado a muitos malabarismos para conseguir se manter com a parca aposentadoria que recebia do governo. Ainda enquanto a mulher vivia havia um pouco mais de folga, pois ela fazia doces para vender, costurava um pouco e, com isso, ajudava bastante no orçamento doméstico.
Agora que enviuvara, as coisas se tornaram bem mais difíceis.
Como a maioria das pessoas naquela cidade, depois de cinco horas da tarde, ele gostava de ficar sentado em sua varanda, cumprimentando os passantes e esperando algum amigo mais chegado que viesse tomar um café e bater dois dedos de papo.
Naquela tarde, uma tarde bonita e colorida, ele se surpreendeu ao ver encostar diante de seu portão, um automóvel.
Era um carro novo, bonito, lustroso. Coisa rara no município.
Um senhor de seus trinta e oito anos de idade, bem vestido, elegante e de modos bem educados, desceu do veículo e dirigiu-se para o portão.
Ele conhecia muito bem aquele homem, não era nenhuma novidade sua chegada, mas o estranho era a expressão carregada de seu rosto, habitualmente alegre e jovial.
Esperou que ele chegasse até a varanda, levantou-se, apertou sua mão e, mais uma vez, se preocupou.
O aperto de mão, sempre caloroso, firme, estava frio, distante...
Tão frio e distante quanto o seu olhar, quanto a sua maneira de agir, como se fizesse cerimônia, como se estivesse até encabulado, julgando-se indesejável naquela casa.
O que seria o absurdo dos absurdos...
O recém-chegado aceitou um café e, depois de tomá-lo, acendeu um cigarro com a mão trêmula.
— Alguma coisa não vai bem — comentou o velho — O que está havendo?
O outro não respondeu de imediato. Soprando a fumaça do cigarro para o alto, depois de alguns segundos de angustiante e opressivo silêncio, falou:
— Estou preocupado... Muito preocupado, na realidade.
O velho ergueu as sobrancelhas e fitou-o, encorajando-o mudamente a continuar.
O visitante serviu-se de mais café e disse:
— Você me conhece desde pequeno. Acho até que me viu nascer, não é mesmo?
— Você sabe que sim! — exclamou o velho — Por que está falando assim, perguntado uma coisa que é do conhecimento de todos?
Mais uma vez, o outro se calou. Parecia pensar muito, escolhendo cuidadosamente as palavras que iria utilizar.
Com expressão dura e um tom magoado na voz, finalmente ele falou:
— Pois é... O que está me preocupando é justamente algo que todo mundo parece saber e somente eu é que não sei...
O velho olhou para as pontas de seus sapatões. Depois de quase um minuto assim, ele se levantou, foi até a sala de jantar e, de dentro de um armarinho de vidro, antigo como o tempo, apanhou uma palha de milho para fazer um cigarro. Do bolso da calça, tirou um pedaço de fumo de rolo e começou a cortá-lo, meticulosamente, amontoando o tabaco no cavo da mão em concha.
— Acho que sei o que você está querendo saber — falou — E acho que tem todo o direito de ouvir a verdade...
O outro ficou lívido.
— Então é verdade... — murmurou.
Teria dito mais coisas se sua voz não lhe morresse na garganta.
O velho acendeu o cigarro de palha, soprou a chama que se formara na ponta acesa, apertou-a com o fundo da caixa de fósforos e, olhando fixamente para seu interlocutor, falou:
— Sim. É verdade.
O visitante apertou os olhos e, com muito sacrifício e esforço, conseguiu controlar suas emoções e sentimentos.
Finalmente, depois de um suspiro, falou:
— Quero saber tudo. Com os menores detalhes. Como você mesmo disse, é um direito que me assiste.
O velho balançou a cabeça afirmativamente, puxou uma baforada do cigarro e convidou:
— Vamos para a cozinha. Esse tipo de conversa é melhor à beira do fogo.
Entraram, sentaram-se junto ao fogão de lenha onde as chamas crepitavam molemente e uma chaleira antiga, sobre a chapa, fervia.
— Na realidade — disse o velho — não há muito que contar. De mais a mais, aconteceu há tanto tempo...
Antes que o outro protestasse, acrescentou:
— Mas não se preocupe. Você vai saber de tudo, pelo menos de tudo quanto eu puder me lembrar.
— Quero saber tudo — insistiu o outro — Não apenas o que você disser que lembra!
Os dois ficaram calados, olhando-se.
Havia certa agressividade na expressão do visitante, mas o velho não ligou.
Depois de alguns momentos, ele sorriu e disse:
— Não sei o que é que isso pode influenciar em sua vida, agora. Na minha, faz muita diferença, pode ter certeza. O fato de você saber, ter certeza afinal, de que é meu filho...
Voltou a acender o cigarro e completou:
— Isso me faz bem. Muito bem, mesmo.
— Mas... As circunstâncias...? — balbuciou o outro — Preciso saber como isso aconteceu!
Um pouco mais controlado e até um tanto quanto submisso, ele explicou:
— Me é muito difícil admitir que minha mãe tenha sido uma leviana... Compreenda!
— Sua mãe jamais foi uma leviana! — protestou o velho — Muito pelo contrário! E, da mesma maneira, eu jamais fui um gavião!
Ele olhou para o velho e surpreendeu-se ao perceber que, pela primeira vez, estava encarando-o como seu verdadeiro pai. De repente, sentiu que havia muitos pontos de semelhança, pontos que parecia até um absurdo jamais ter descoberto antes.
— Como pode afirmar isso? — perguntou — Se quando eu nasci minha mãe já era casada fazia dez anos! E não tenho notícia de que houvesse enviuvado ou se separado nessa ocasião!
O velho balançou a cabeça afirmativamente e falou:
— Casada, era... Isso, ninguém pode negar. Era casada na Igreja, no Cartório e tudo o mais.
Ergueu os ombros e acrescentou:
— Só que o casamento jamais passou disso.
Antes que o filho pudesse dizer alguma coisa, o velho prosseguiu:
— O homem com quem sua mãe se casou, logo após o casamento, adoeceu. Por isso, não tiveram filhos. Daí, após nove anos de casados, sua mãe achou que era preciso uma criança. Ela não queria deixar a fazenda para os irmãos dela e, muito menos para os do marido. Assim, um dia, ela me pediu para lhe dar um filho.
Fixando o olhar no homem que estava à sua frente, completou:
— Eu era um empregado... Apenas obedeci. Apenas satisfiz esse desejo dela.
Houve um silêncio pesado, denso... Tão denso que se tinha a impressão de poder cortá-lo com uma faca.
O visitante acendeu um cigarro, a mão já mais firme, parecia muito mais senhor de si após ter conseguido a confirmação que viera buscar.
— Você acha que o pai... que o marido dela... sabia?
— Só podia saber, ora essa! — exclamou o velho — Eles jamais tiveram uma relação! Jamais dormiram juntos! Só nos primeiros dias após o casamento!
O filho voltou a ficar pensativo, olhando para a brasa do cigarro.
Por fim, ele disse:
— Acho que não vou poder chamá-lo de pai... Em primeiro lugar, não me acostumaria... Em segundo lugar, teria de dar muitas explicações complicadas lá no serviço, na repartição... Seria penoso e difícil.
Levantou-se, sorriu, estendeu a mão para o velho e murmurou:
— Em todo caso, quero que saiba que sempre gostei muito de você... Sempre o tive como um grande companheiro e no fundo, estou feliz com essa notícia. Muito obrigado!
Já fazia mais de duas horas que ele tinha ido embora (deixara sobre a mesa da cozinha um gordo envelope de dinheiro dizendo que era para ajudar nas despesas da casa), e o velho continuava ali, sentado à beira do fogão de lenha, fumando e pensando.
Quase quarenta anos! Quanto tempo!
Ele trabalhava na fazenda Brejo Alegre. Era o pau-para-toda-obra, o capataz, o retireiro, o zelador, o comprador... Enfim, fazia de tudo, de tudo cuidava.
Fazia já doze anos que ali estava, chegara nada menos que três anos antes do jovem casal que comprara aquelas terras.
Sempre estranhara a boa disposição da mulher e a preguiça e marasmo do marido. Era um sujeito letárgico, nada fazia a não ser ficar estendido na rede, a dar ordens para todos.
Todos?
Não! Ele não conseguia se fazer obedecer pela mulher...
Moça desempenada e bonita, ela era o oposto do homem que tinha por companheiro: decidida, punha as mãos na terra, trabalhava sem medo e sem medir o tamanho do serviço que tinha pela frente. Dava gosto, ver aquela mulher!
Durante alguns anos, o relacionamento entre o casal e ele foi o que se poderia imaginar de mais comum e normal. Era um relacionamento exatamente como deveria ser entre patrões e empregado. Ele labutava no serviço pesado, ela fazia o restante e o marido...
Bem... Ele apenas olhava.
Como diz um velho ditado regional, “casa com cumeeira fraca não dá boa morada”, um dia, o pagamento dos empregados da fazenda, não saiu.
A falta de chuva, o gado com o pasto ruim, o leite muito quebrado... Uma porção de coisas influíram para que o dinheiro não fosse suficiente nem mesmo para pagar as despesas da sede.
O marido, em vez de pelo menos tentar se explicar, nada mais fez que se deitar na rede, agora com um litro de cachaça na cabeça e... dormir.
Foi ela quem veio lhe dizer, toda sem jeito:
— Olhe... Este mês não tiramos para o sustento... Não vamos ter como pagar os camaradas.
Ele ficou com dó daqueles olhos cheios d’água e qualquer coisa nos modos da moça, tocou fundo em seu coração.
Assim, foi absolutamente natural que ele dissesse:
— Não faz mal, dona... Nós vamos trabalhar dobrado e, no mês que vem, a gente tira a diferença.
— Muito obrigada! — disse ela — Você não vai se arrepender por estar me ajudando agora!
Ela saiu, apressada, dando a desculpa de que tinha de ver um doce que estava no fogo, encomenda de um bar lá da cidade.
Ele ficou ali, vendo-a se afastar, achando esquisito que ela tivesse dito “me ajudando” e não “nos ajudando”, como seria o mais normal.
Teve a explicação para essa atitude da moça, quando esta passou diante do marido que roncava na rede, bêbado.
— Tranqueira! — disse ela, com raiva — Não presta para nada!
Ele não pode deixar de sorrir. Na verdade, sua opinião a respeito daquele homem, era exatamente a mesma...
Resolvido a ajudar aquela mulher a levantar a fazenda, ele passou a trabalhar — como prometera — em dobro. Não tinha mais hora de descanso, não parava um só segundo durante o dia e rara era a noite em que ele ia deitar antes de uma hora da madrugada.
Como seria de se esperar, passou a se introduzir mais na casa e nos negócios do casal. Na realidade, nos negócios dela, pois o marido, inchado de tanta cachaça, ele não valia mesmo para mais nada. Se antes já era um traste, a partir do momento em que assumira a sua bebedeira, passara a ser muito pior do que um pau podre. Dizia-se, com razão, que se uma vaca deitasse na porta de sua casa e precisasse de um balde d’água para não morrer, com certeza, ele perderia a vaca.
Aquele homem não se levantaria da rede e não largaria a garrafa de cachaça por nada deste mundo.
E ela, a esposa, a correr de um lado para o outro, matando-se de trabalhar, fazendo doces, fazendo bordados, ajudando na horta, no chiqueiro, no galinheiro, trabalhando, trabalhando, trabalhando...
Porém, esse esforço todo não ficou sem recompensa: no final de um ano, as dívidas estavam pagas, a fazenda prosperava. O gado, gordo e bem tratado, produzia sem parar. As lavouras, bem cuidadas, bem planejadas, eram uma promessa de fartura, de boas safras.
Finalmente, graças a Deus, a penúria terminara.
Ele já gozava de bastante liberdade na casa, entrava pela porta da cozinha e só se anunciava depois de estar lá dentro. Por várias vezes, solteiro que era, tomara suas refeições com a dona da casa e mais de uma noite ficara até tarde conversando com ela, fazendo contas, prestando contas e arquitetando planos para as próximas plantações e para novos investimentos que, à medida que a fazenda melhorava, tornavam-se mais e mais urgentes.
Uma manhã, ao chegar à porta da cozinha, percebeu que ela estivera chorando. Hesitou, quis sair, discreto que era, mas a afeição que já sentia por aquela mulher era suficiente para o impedir.
Perguntou, sem jeito, rodando o chapéu entre as mãos:
— O que foi, dona? Porque essa tristeza toda?
Ela enxugou os olhos no avental e, procurando disfarçar, atiçou o fogo indagando, a voz ainda entrecortada pelos soluços:
— O senhor quer café? Vou passar um agora...
Serviu-o numa caneca de louça que, ele sabia muito bem, só ela é que usava. Ao lhe dar o café, as lágrimas voltaram a rolar por suas faces coradas pelo calor do fogo e pela emoção que a sacudia.
Ele pegou a caneca e, com a outra mão, trêmulo e sem jeito, puxou-a para seu peito dizendo:
— Chore não... Tudo está tão bem agora... O que é que está acontecendo que a deixou tão triste?
Ela se esquivou, arredia e arisca. Seu rosto ficou mais corado e, atrapalhada, encabulada, acabou se queimando com o café quente.
Ela soltou um pequeno grito e sacudiu a mão escaldada.
— Queimou-se? Queimou-se? — perguntou ele, aflito — Deixe ver, vamos passar gordura para não empolar!
Dócil, ela se deixou medicar e ele se demorou passando gordura fria sobre sua mão, por entre seus dedos...
Ainda que muito sem jeito, ela não fez a menor menção de fugir àquele contato.
Voltou aos seus afazeres e ele saiu, ia juntar uma ponta de gado que comprara para a fazenda e que precisava curar.
Ela passou o dia todo pensando nesse incidente.
Não conseguia esquecer o carinho que ele mostrara, a atenção e a preocupação que lhe dispensara...
— Tão diferente daquele traste...
Assustou-se. Que novidade era aquela?! O que estava acontecendo com ela?!
Não conseguiu abafar uma vibração nova, um entusiasmo diferente e estranho que sentia, que a fazia sorrir e suspirar, que a deixava pisando em nuvens, que a fez salgar duas vezes o arroz, queimar o feijão e esquecer de fritar os ovos para o jantar.
À noite, ao entrar no quarto para dormir, viu o marido, já havia muito tempo embriagado e roncando como um porco.
Sentiu raiva daquele homem, ódio daquele bêbado e vagabundo, absolutamente inútil...
— Porco miserável! Não serve nem mesmo para me dar um filho!
Foi nesse momento, ao dizer essa frase, que a idéia lhe surgiu na cabeça. Um filho! Ela precisava de um filho!
Não dormiu aquela noite.
Ficou o tempo todo rolando na cama, sem encontrar posição. A noite inteira, seu pensamento vinha para o mesmo ponto:
— Um filho! Preciso de um filho, mas que não seja igual a esse cachaceiro!
Mal se encontraram nos dias que se seguiram.
Ela sabia que ele andava ocupado com o gado, com as roças dos meeiros, mas não deixou de ter a impressão de que ele estava fugindo da sede, de que estava evitando se encontrar com ela.
No final da semana, ela mandou chamá-lo, pretextando querer saber da produção de leite.
Ele estranhou.
— Gozado! Ela nunca me perguntou nada antes! Será que está desconfiando de mim?
Entrou na casa, desta vez, acabrunhado e tímido.
Ela, sorridente, logo lhe serviu uma caneca de café, dizendo:
— Eu queria lhe pedir desculpas pelo outro dia... Não queria lhe dar trabalho, mas estava nervosa, não vi direito o que estava fazendo e, por isso, me queimei...
Aliviado, ele sorriu e respondeu:
— Ora, dona... Não foi nada! Não foi trabalho nenhum!
Ela tocou seu braço e falou:
— Pois é... Gostei muito de ver que o senhor tem carinho por mim... Eu bem que preciso! O senhor vê o marido que Deus me deu!
Estranhando a conversa, ele corou encabulado e não conseguiu mover um músculo sequer.
— Veja só — continuou ela — Estamos casados há nove anos e não tive filhos até hoje! E não é por que eu não queira! É ele que não consegue fazer nada...
Baixando os olhos, acrescentou:
— Sabe... Eu também sinto falta...
Uma luz se fez em sua cabeça. Percebeu, afinal o que ela estava querendo, descobriu a razão por ter sido chamado àquela hora.
Por um breve instante, ele desejou sumir, quis que o chão se abrisse sob seus pés e o tragasse para as profundezas do inferno...
Mas, era impossível...
Ela o segurava pelo braço, puxava-o para muito perto de si e dizia:
— Quero um filho, quero um herdeiro que possa ficar com tudo isto, que possa fazer toda esta terra prosperar! E quero ter esse filho com o senhor!
Ele sentiu suas pernas amolecerem, sua alma parecia querer fugir, o corpo querendo ficar...
Não conseguiu falar nada, não enxergou mais nada...
Veio dar por si no quarto de hóspedes, ela ainda deitada ao seu lado, nua, linda, o sorriso bonito das mulheres que estão satisfeitas...
— Já nem me lembrava mais... — murmurou ela.
Daí por diante, ele a fez recordar o amor muitas e muitas vezes...
Até que um dia, ela lhe disse:
— Estou grávida...
Quando nasceu o menino, forte, gorducho, esperto, o marido não teceu nenhum comentário.
Apenas pegou mais uma garrafa de pinga e bebeu...
É claro que não chegou a ver o primeiro aniversário da criança, morreu um mês antes, num tombo da rede em que estava bebendo fazia já três dias seguidos.
Ele ajudou a carregar o caixão do defunto e, no dia seguinte, dando uma desculpa qualquer, foi embora da fazenda.
Não suportaria ver crescer o menino sem poder dizer que era seu pai e, de toda forma, a fazenda já ia bem, já não mais precisava dele.
Agora, depois de tantos anos passados, também estava sozinho...
Olhou para a noite, pensou:
— Pois é... Agora, estamos sós... Ela e eu... Só que somos dois velhos. Nada mais que dois velhos.
Levantou-se e foi para o quarto, o passo firme, o corpo ereto.
Despindo-se para dormir, murmurou:
— Sim... Agora estamos velhos... Não adianta querer outra vez...

sexta-feira, 12 de dezembro de 2008

A BELEZA FEMININA


Escuto, indiscreto sem querer, a conversa do casalzinho que está à mesa ao lado da minha, num restaurante qualquer.
Muito séria, a mocinha pergunta:
— O que é que você considera "uma mulher bonita"?
Galante e até mesmo um pouco anacrônico, o rapaz responde:
— Uma mulher como você...
Não posso deixar de considerá-lo cavalheiro, mas da mesma maneira, eu o acho um pouco pobre no que diz respeito à definição.
Sorrio, com tristeza, de mim mesmo.
Se sou capaz de me julgar capacitado à crítica, essa capacidade se deve apenas à idade... O que tenho, no fundo, não passa daquele ciúme nostálgico que bem pode ser explicado como "inveja da juventude"...
A mocinha, mais objetiva e bastante exigente, não se contenta com aquela resposta e reclama:
— Você não disse nada. Não respondeu à minha pergunta.
Muito mais esperto do que eu poderia imaginar, o rapaz lhe dá um beijinho, outro e mais outro, atacando imediatamente em seguida seu prato, deixando o assunto tombar por terra.
Está decidido a não responder, a não se comprometer...
Pois bem, cara mocinha, minha bela menina-mulher... Já que seu companheiro não satisfez sua curiosidade, vou procurar fazê-lo.
Em primeiro lugar, não pense você que a presença destes cabelos brancos e destas rugas que maldosamente já começam a me circundar os olhos e a tornar mais duro o meu sorriso, sejam motivos suficientes para você me classificar de "velho". Posso ser mais idoso que você e seu companheiro juntos, mas ainda falta muito para que eu me considere velho e ultrapassado.
No fundo, esses anos todos que já vivi, no mínimo serviram para que certos conceitos meus sejam um bocado diferentes da média, sejam talvez muito subjetivos e até difíceis de explicar, mas pode acreditar, minha menina bonita, são conceitos trabalhados, vivenciados e muito analisados...
Conceitos que, pelo menos, me satisfazem e que, no que diz respeito à beleza feminina, pode ser que a satisfaçam também.
Certa vez, ouvi um desses filósofos de bar dizer que o belo na mulher é exatamente aquilo que se contrapõe ao feio do homem.
Talvez seja esta uma boa maneira de entender como e por que mulheres tão bonitas se casam com homens tão feios... e vice-versa.
Mas, em minha opinião, são balelas, ginásticas mentais e palavrório inútil.
Uma mulher é bela por que...
É simplesmente bela.
Ao lado da parte física, a matéria harmoniosamente constituída, as linhas e curvas esteticamente bem equilibradas, há algo mais, há qualquer coisa que faz com que o homem que a vê sinta, de repente, um enlevo todo especial e a deseje...
Sim, ele pode desejá-la e de muitas maneiras.
Talvez até mesmo como eu a estou desejando agora, sem nem sequer pensar em qualquer coisa que seja diferente de um platonismo até fora de moda.
É esse algo mais, essa aura que circunda a mulher que é bela, que é capaz de fazer com que uma criança — esse serzinho que ainda não tem maldade em sua alma, que não tem malícia alguma em seu coração e não possui qualquer idéia carnal em sua mente — a veja e diga, com um sorriso encabulado:
— Você é bonita...
Seria essa aura uma expressão ectoplásmica da bondade?
Não sei...
Não sei definir muito bem o que possa ser a bondade feminina.
Seria a capacidade de se entregar ao amor, de se dedicar ao homem que ama, de se desdobrar como diz Raimundo Corrêa, "desfiando fibra por fibra o coração" em relação a seus filhos? Ou seria a bondade apenas o fato de ser cordata, dócil, simpática e sempre pronta a servir?
Há mulheres belas que não são assim...
Têm sua vida própria, seu brilho próprio, independem de todo e qualquer homem, não querem saber de filhos — estes atrapalhariam seus objetivos — e nem por isso deixam de ser belas, deixam de ser desejadas...
Mas...
Olhando-me interiormente, avaliando a experiência que estes cabelos brancos provam, penso se estas mulheres, belas, belíssimas, maravilhosas e atraentes, mulheres por quem um homem seria capaz de cometer as maiores loucuras, penso se elas continuarão merecedoras de toda essa devoção... dentro de trinta anos.
Sim.
Dentro de trinta anos, quando a chamada "idade madura" chegar, com o grisalho nos cabelos, as juntas já um tanto rígidas, a disposição para tudo bem arrefecida, a vida marcada por desencontros e desencantos, por desilusões e frustrações, será que essas mulheres continuarão belas?
Ou será que em seus rostos, já então vincados, não estará mais presente do que qualquer outra coisa, o amargor decorrente de tudo o que foi vivido, de tudo quanto foi passado, sofrido e, sobretudo, de todos os momentos perdidos na perseguição de um ideal, de uma meta que, fundamentalmente, não era a sua?
Veja, minha bela menina-mulher...
Sim, pois você é bela, pelo menos ainda...
Continue assim como a vejo, olhando com carinho para esse bobalhão que está à sua frente... Continue a ser como é, a pensar como uma menina e a agir como uma mulher.
Talvez seja esse o segredo...
Tenha suas metas, persiga-as. Alcance-as. Realize seus sonhos materiais, profissionais, financeiros. Conquiste seu lugar na cruel sociedade, seja alguém, vença!
Mas, para que continue a ser bela, para que até mesmo esse apolônico imbecil que a tem hoje, continue a seus pés, é preciso apenas uma coisa: é preciso que você jamais deixe de ser, simplesmente, mulher...

sábado, 6 de dezembro de 2008

O SAPATO NO MEIO DA RUA


A umidade típica de São Paulo parece entrar pelos ossos dando uma sensação de frio e, ao mesmo tempo, um agradável repouso para os pensamentos.
Não sei a razão, mas gosto de deixar a mente voar nessas noites paulistanas úmidas e frias. Talvez por que esse tipo de clima se identifica muito com a melancolia que me invade a alma de vez em quando...
A madrugada avança e eu olho a rua, debruçado na janela de meu apartamento.
Impossível dizer no que penso, talvez na má qualidade do uísque de algumas horas atrás, naquela festa, talvez nos olhos – ou nas curvas – da morena com quem tinha conversado uma boa parte da noite, logicamente sem chegar a nada. Talvez pense em como estou cansado desse tipo de vida e em como seria bom mudar, alterar tudo, recomeçar com outra filosofia, com outros objetivos, em outro lugar, com outras pessoas...
De qualquer maneira, estou melancólico, nostálgico, enfim, um poço de tristeza.
É julho e, neste mês, todos os meus conhecidos e pseudo-amigos tiram férias. Eu fui obrigado a ficar na Metrópole por causa de um negócio que não se resolveu ainda, à espera de uma resposta que está demorando demais a chegar...
À hora do jantar, pelo telefone, transportara-me espiritualmente para minha cidade de interior e, talvez... ainda não tivesse conseguido voltar. O que só servia para me deixar ainda mais deprimido e, como se costuma dizer, na fossa.
Olho pela janela, sinto o vento frio da madrugada em meu rosto, vejo a mulher lá em baixo.
A mesma mulher que eu tenho visto todas as noites, não importa se é ou não final ou meio de semana, não interessa se faz calor ou frio, se chove ou se a Lua paulistana, tímida e embaçada, tenta desesperadamente vencer a poluição para trazer para as calçadas da Megalópole, pelo menos um pouco de romance e, com certeza, muitas recordações.
A mulher faz parte da paisagem juntamente com os postes, as árvores e as latas de lixo. Anda de um lado para o outro, balançando sua bolsinha de miçangas, com as pernas muito à mostra, com um caminhar bamboleante e provocador, mesmo que não haja viv'alma na rua.
Deve ser uma trabalhadora exemplar: não está se importando com o avançado da hora, com o vento ou com a umidade.
Seu único objetivo é fazer algum dinheiro.
É trabalhar, enfim.
Essa mulher, pobre mulher, trabalha nesta noite.
Com certeza, está rodando a bolsinha de uma esquina para a outra, ali na rua Piauí, por várias e várias horas, caçando, caçando...
Possivelmente em sua casa – que, aposto, não é mais do que um quarto infecto em algum cortiço, isso se não for um barraco miserável em uma favela qualquer – uma criança está chorando de fome, pedindo um pouco de leite, meio copo de carinho.
Ela não sabe fazer mais nada, não tem idéia de cozinha – como pode saber cozinhar, alguém que jamais teve uma panela cheia em sua casa? – de escritório ou de qualquer outra coisa. O máximo que sabe é aquilo que a fez gerar esse pequenino ser que agora chora e pede.
E ela precisa dar.
Dar para sua criança, dar por sua criança.
E lá está a mulher, andando de um lado para o outro, incessantemente, incansavelmente.
Quando vê que um automóvel se aproxima, seu andar fica mais sedutor, seus movimentos tornam-se mais sensuais e provocantes. Chego a escutar, de minha janela, o chocalhar das contas de sua pulseira.
Que terrível necessidade, que imperioso apelo a faz se portar assim!
E, pior ainda, imaginar que ela não pode dividir esse desespero com ninguém!
Ao encontrar um parceiro, melhor dizendo, um freguês, ela precisará sorrir, terá de fingir...
E haverá algo mais difícil do que fingir o prazer, do que fingir o amor?
Ela não poderá dizer que sua criança está com fome em casa e que ela está na rua a essa hora por que precisa, agora e já, de dinheiro para comprar leite, para manter viva aquela coisinha que ela mesma jamais soube quem foi o pai – ou será que sempre soube?
Alguém pára ao seu lado e ela, com o andar mais provocante do que nunca, se aproxima. Encosta-se à janela do carro e, após alguns instantes, o automóvel parte e ela fica.
Provavelmente, o motorista não aceitou o preço.
— Puta sim, mas com algum valor, seu desgraçado! — grita ela, quando o carro já está perto da outra esquina.
Não consigo entender direito o rosário de palavrões que ela desfia em seguida e, no íntimo, acho que aquele motorista bem que os mereceu.
Afinal de contas, ela é uma pessoa humana, tem de ter algum valor! Mesmo que considerada como uma mercadoria, tem todo o direito de se sentir desprezada, desvalorizada.
E de se ofender com isso, ora bolas!
O sinal da Avenida Angélica abre, um outro automóvel avança e pára.
O motorista a chama, do lado de lá da rua.
Ela, pressurosa, atravessa para ir ao encontro, talvez, de um litro de leite para seu filho.
Nisso, vindo pela contra-mão, um outro carro, em grande velocidade, entra na rua Piauí.
Pisca os faróis e acelera.
A moça está bem no meio do leito carroçável, estaca, olha para o veículo que avança, tenta recuar, hesita, atrapalha-se com o sapato de salto alto, dá um passo para a frente, um de seus sapatos lhe sai do pé e...
Ela é atropelada.
O impacto, fortíssimo, atira-a longe.
Ela cai, desengonçada, sem um grito, sem mais um movimento.
O automóvel não pára...
Acelerando mais ainda, ele entra pela Avenida Angélica e desaparece.
O outro carro, cujo motorista a chamara, também trata de se fazer ao largo, descendo pela rua Itacolomy, os pneus cantando na esquina, tal a pressa que ele tem em deixar aquele local.
E ela fica ali, estatelada nos paralelepípedos da rua...
Uma boa alma pára, pega a moça e leva-a antes mesmo que eu possa me refazer do susto.
Vejo-a ser colocada dentro do carro, mole, sem vontade própria.
A rua fica, outra vez, deserta.
De minha janela, olho a madrugada, fria e úmida, a garoa transformada em chuva miúda, esse tipo de chuva que molha tudo.
Que molha até à sola, o sapato de salto alto que a moça esqueceu no meio da rua...