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sábado, 31 de janeiro de 2009

O ENCONTRO


— Desculpe... Você não é o José, casado com a...
Ela franziu as sobrancelhas, apertou um pouco os olhos e sorriu, sem jeito, depois de um inútil esforço para se lembrar daquele nome.
Fui em seu auxílio:
— Sim... Mas não se preocupe. Já não estou mais casado com ela há muito tempo.
— Você não está lembrando de mim...
O tom de voz era queixoso, sua fisionomia denotava tristeza e uma profunda decepção
Afinal, não era nada elegante eu não a reconhecer.
Mas, ela estava enganada.
Era mais do que evidente que eu me lembrava dela, como poderia me esquecer?
Só que...
Os anos tinham passado, lentos ou rápidos, isso não importa, o fato é que eles tinham passado inexoráveis e cruéis para nós dois.
Ela estava bem diferente.
Seus olhos, é verdade, ainda conservavam aquele mesmo brilho de antes, seu sorriso ainda mantinha aquele ar de desafio, seus lábios continuavam carnudos e sensuais, lábios sinceros que me recordavam muitos e muitos beijos...
É certo que havia algumas marcas do tempo.
Rugas discretas nos cantos dos olhos, alguns vincos na testa e as pálpebras um pouco mais pesadas denunciavam os momentos ruins que lhe tinham acontecido.
Momentos em que ela talvez não tivesse tido um ombro para encostar a fronte e derramar algumas lágrimas aliviadoras enquanto ouvia palavras macias de reconforto.
Momentos que eu certamente teria gostado de viver com ela, de ter estado presente...
Não.
Eu jamais poderia esquecê-la...
— Sente-se — convidei — Tome um drinque comigo... Ficarei feliz relembrando os velhos tempos.
Ela sorriu, hesitou por um breve instante e, com um gesto que quase me pareceu ser de renúncia, aceitou.
— Pode ser uma boa idéia — disse — Talvez assim você refresque um pouco a sua memória...
E, antes que eu pudesse protestar, antes que eu tivesse oportunidade de lhe dizer que não seria preciso nenhuma espécie de manobra para fazer ressuscitar dentro de mim aqueles sentimentos que há tanto tempo estavam dormentes, ela completou:
— Vamos ver se você lembra mesmo... Quero tomar o meu drinque de sempre.
Sorri, vitorioso.
Chamei o garçom e pedi que trouxesse mais um uísque para mim e uma Margarita para ela.
Notei um lampejo de satisfação em seu olhar e, vendo que ela apanhava um cigarro, apressei-me em acendê-lo.
Como antes, ela o pôs no canto da boca, tragou uma baforada generosa e olhou para mim.
Sim. Ela ainda era muito bonita...
A juventude passara, aquele frescor dos vinte anos desaparecera e naquele rosto que outrora contava, ainda que em silêncio, todos os sonhos e todo o anseio pela vida, havia uma maturidade que, ao mesmo tempo que me surpreendia, também me deixava triste, consciente que ficava de que, se ela mudara, o mesmo teria acontecido comigo, também para mim, o tempo teria sido inexorável e teria deixado suas marcas.
Talvez, até mesmo mais fundas, mais pronunciadas...
Ela, por acaso, não manifestara uma certa dúvida ao se aproximar? Não perguntara, insegura de suas palavras, de sua memória, se eu era o José?
O José, aquele mesmo José que quase um quarto de século atrás, a tivera em seus braços, a beijara sem se preocupar com as lágrimas, em um adeus?
Aquele mesmo José que a amara, que lhe jurara fidelidade, que dissera coisas, que prometera tudo e, no fim...
Tinha sido há muitos anos...
Um quarto de século, talvez.

.x.x.x.

Era um fim de tarde, de uma bela tarde de primavera de um ano que não me lembro, já perdido no vazio do tempo, e ela vinha caminhando pela calçada naquela cidade de interior onde eu tinha ido parar nem sei por qual razão ou motivo.
Morena, os cabelos muito lisos e brilhantes, caíam-lhe sobre os ombros, trazendo-me à memória a melodia de Índia.
Passou por mim, deu-me tempo apenas de ver que me lançava um olhar muito rápido, arisco, fugidio.
Porém, foi tempo suficiente para me fazer sonhar.
À noite, durante o footing — sim, o final da década de 60, ainda era o tempo do footing na maioria das cidades de interior: as moças caminhavam pela praça da Matriz no sentido horário e os rapazes no sentido contrário; quando a empatia surgia, um sorriso numa primeira volta, uma piscadela na segunda, um breve cumprimento na terceira e, na quarta volta, já era permitido interromper a marcha por alguns instantes e trocar algumas palavras, normalmente apenas para marcar um encontro no dia seguinte — vi-a outra vez.
Estava linda, metida num vestido decotado que lhe realçava as formas e a feminilidade.
Sorrimo-nos, piscamo-nos, cumprimentamo-nos e...
— Gostaria de me encontrar com você amanhã...
— Saio do colégio às cinco. Hoje, quando o vi, eu estava indo para minha casa.
— Então às cinco.
— Às cinco.
Até foi muito, para uma primeira vez.
No dia seguinte, pontualmente às cinco horas, eu lá estava, à porta do imponente Ginásio Monteiro Lobato, à sua espera.
Ela apareceu, sorriu, veio para perto de mim e começamos a caminhar em direção ao Largo da Estação.
Falamos aquelas banalidades que tão bem caracterizam um encontro desse tipo, ela me contou que estava no terceiro ano da Escola Normal, em pouco mais de dois meses estaria formada e, no ano seguinte, já começaria a lecionar.
— E você? O que faz?
Disse-lhe que já estava na Faculdade, verdade que ainda no começo, e que faltava muito até poder começar a trabalhar e a conquistar minha independência.
— Podemos marcar um encontro para a noite?
— Na praça?
— Não. Em outro lugar... Gostaria de poder estar sozinho com você.
Ela ficou em silêncio pior alguns momentos, olhou-me de soslaio com um sorriso a lhe iluminar o rosto.
Por fim, disse:
— Está certo. Também não gosto de muita gente por perto.
— Onde, então?
Mais uma vez, ela demorou a responder.
Notei um certo rubor em suas faces, quando ela me disse:
— Hoje à noite irei a uma festinha de aniversário. Na rua Duque, sabe onde fica? A festa será numa casa grande, com o portão de grade...
— Estarei lá.
— Às nove, está bem? Preciso ficar um pouco na festa, pelo menos...
Sorri.
Sua frase, deixando bem clara uma segunda ou até terceira intenção, fez com que meu coração batesse mais rápido, cheio de esperanças.
Que não se mostraram vãs...
Às nove horas, ela surgiu no portão, olhando para os lados, ressabiada.
Pisquei os faróis do carro e abri a porta para que ela entrasse.
— Mas... de carro?
— O que é que tem?
Ela deu de ombros e partimos em direção à barranca do rio.
Não havia muito o que conversar mas, em muito pouco tempo descobrimos que havia muito o que fazer...
Ela era quente, carinhosa, voluptuosa...
Seus seios, túrgidos e frementes, tinham o exato tamanho de minhas mãos e seus lábios, ansiosos por beijos, cheios de uma sensualidade quase animal, esmagaram-se incontáveis vezes contra os meus.
Não foi preciso insistir muito para que ela me permitisse palpar suas coxas e, daí à mão subir um pouco mais, foi um passo curtíssimo.
Não posso garantir que tenha sido recíproco, mas percebi o que acontecera alguns minutos depois quando, ainda ofegante, ela me disse:
— Serei sua para sempre...

.x.x.x.

Os anos passaram, o tempo deixara marcas, cicatrizes terríveis, lembranças amargas que se sobrepuseram às doces e que as apagaram...
— Você não mudou — falou ela, sem que eu conseguisse perceber se havia ou não algum sarcasmo em sua frase.
Sorriu e arrematou, cantarolando a velha música:
— "Você está bem, disposto..."
— "Também sofri..."— respondi no mesmo tom.
— "Mas não se vê no rosto..."— continuou ela.
Não era verdade.
Podia constatar isso todos os dias pela manhã, sem que ninguém precisasse dizer coisa nenhuma. Bastava-me ver a imagem que o espelho devolvia, não tinha necessidade de mais do que ver os cabelos brancos que surgiam, cada vez mais numerosos em minhas têmporas, as rugas que faziam meu rosto mais amargo, mais triste, menos esperançoso...
— Também me separei — murmurou.
Eu não queria mas senti uma pontada no coração.
Esperava que ela me dissesse que sua vida estava indo bem, que estava feliz e realizada, que se encontrara, afinal, a despeito de tudo.
Mas não...
Ela também sofrera com uma ruptura, ela também sofrera por causa de uma separação.
E depois...
O retorno à eterna busca...
Teria tido sorte, por fim? Teria encontrado a outra metade, o complemento certo para a felicidade?
Ou teria acontecido com ela o mesmo que me acontecera?
Talvez...
Se eu não tivesse sido tão medroso e egoísta vinte e poucos anos atrás...

.x.x.x.

Voltamos a nos encontrar no dia seguinte, no outro e no outro.
Depois, tive de ir embora, precisei voltar para a Capital.
— Você vai me esquecer...
— De jeito nenhum! Como poderia...?
— Jure que vai voltar...
— Juro!
Não tive tempo de cumprir o juramento.
Dez dias depois, plena quinta-feira, acordei com a campainha da porta tocando.
Era ela.
— Você!
— Vim preparar seu café da manhã...
Preparou também o almoço, o jantar, o desjejum do dia seguinte e todas as refeições de muitos outros dias, daí para a frente.
— Moro sozinho... Fique comigo, não quero que vá embora.
E ela ficou.
De dia, depois de cuidar de tudo em casa, ia dar aulas num colégio ali perto.
E à noite...
Bem...
À noite ela era integralmente minha, entregava-se doidamente às minhas fantasias e aos meus caprichos, realizava-me, satisfazia-me.
Até que um dia, cerca de três meses depois, alguns colegas decidiram passar o fim-de-semana em Ubatuba.
— O Zé? Não! O Zé está casado...! Nem vamos convidá-lo!
Ouvi...
Ouvi e comecei a pensar, passei de repente a perceber que era verdade, eu estava fazendo uma vida de homem casado... sem o ser!
— Ainda sou muito novo... Não posso me amarrar desse jeito!
Nem voltei para casa. Da Faculdade, segui com os colegas para Ubatuba.
Voltando, na segunda-feira à noitinha, fiz vista grossa para as lágrimas que ela derramava, fiz careta ao ouvir suas queixas e ri quando ela disse:
— Você poderia ter pelo menos um pouco de consideração! Nem me avisou!
Olhei para ela e perguntei:
— E por que deveria avisá-la? Será que também teria de pedir autorização?
Ela não respondeu.
No dia seguinte, quando voltei da Faculdade, ela não estava mais.
Depois disso, encontrei-a ainda duas vezes: uma, quando ela apareceu para me devolver as chaves do apartamento e deixar seu endereço e outra, a última, quando fui à sua casa, um bonito apartamento em Perdizes, para lhe levar umas cartas que tinham chegado em meu endereço.
Nada falamos, praticamente.
Apenas aceitei um café e, ao me despedir, desejei-lhe sorte.
— O mesmo, para você — murmurou ela, quando eu já ia entrando no elevador.

.x.x.x.

— Eu o procurei — falou ela, em voz baixa — Deus sabe como o procurei!
— Estava fora — repliquei quase num sussurro — Nos Estados Unidos... Não poderia ter adivinhado.
— Precisei de um amigo — prosseguiu ela, como se não me tivesse escutado — Fiquei desesperada, à beira de um colapso nervoso.
Seus olhos me recriminaram enquanto ela dizia:
— Se o tivesse encontrado, acho que as coisas teriam sido mais fáceis...
Já eu não tinha tanta certeza assim.
Pelo que ela estava me contando, sua separação coincidira com a minha e, naquela ocasião eu não tivera forças nem para mim mesmo, como poderia tê-la apoiado? Como poderia ter servido de esteio para quem quer que fosse?
Olhei suas mãos.
Continuavam finas, bonitas, delicadas...
Claro que a pele já estava um pouco mais frouxa, já se notavam aquelas manchas traiçoeiras que os médicos chamam pomposamente de "manchas hipercrômicas” e que o leigo, muito mais sábio, classifica de "manchas da velhice"...
Mas eram as mesmas mãos...
As mãos que deslizaram pelo teclado do piano em minha casa e que, muitas e muitas vezes, me acariciaram os cabelos, me exploraram o corpo em carinhos alucinantes, transportando-me para um universo de felicidade inigualável...
Ela terminou seu drinque, fitou-me, olhou em seguida para o relógio e disse:
— Tenho um compromisso importante... Preciso ir embora.
Levantou-se e eu a imitei.
Aproximou-se de mim, beijou-me as faces fazendo-me sentir o mesmo calor de antigamente ao contato com sua pele e falou:
— Vamos nos encontrar amanhã, está bem? Acho que será bom para nós dois revivermos aqueles instantes tão bons que já tivemos.
Disso eu tinha certeza.
— Ainda moro no mesmo lugar... Lembra onde é? Tem o telefone?
Não esperou que eu respondesse.
Era mais do que evidente que eu tinha a obrigação de ter o seu número de telefone, seu endereço, uma maneira qualquer de encontrá-la.
Beijou-me mais uma vez, desta feita sobre meus lábios e se afastou.
Eu fiquei ali, de pé, ao lado daquela mesa de bar, vendo-a passar por entre as mesas e ganhar a rua.
Ainda sentia o gosto de seu beijo quando sentei novamente e pedi ao garçom que me trouxesse um uísque duplo.
Era o adeus...
O adeus definitivo, o fim de tudo.
Não haveria encontro algum no dia seguinte e, era lógico, nunca mais nos veríamos.
O garçom trouxe a bebida e, enquanto eu entornava o seu conteúdo garganta abaixo desejando que fosse um copo do mais potente raticida, pensei:
— Meu Deus... Porque a pusestes em meu caminho logo hoje? E como é que eu vou fazer para lembrar seu endereço se nem sequer consigo me lembrar de seu nome?!
Olhei para o fundo do copo já vazio.
Não...
A resposta a essa terrível e avassaladora pergunta não estava ali.
Chamei novamente o garçom.
Talvez no fundo de um outro copo... Talvez ainda não estivesse tudo perdido.
Afinal, eu me lembrara de tantas coisas relacionadas a ela... Quem sabe, com uma ajudazinha...
Quem poderia garantir que ela não voltaria?
E quem poderia dizer que seu nome não me viria à mente junto com os vapores do uísque?
— Mais alguma coisa, Doutor José? — indagou, solícito, o garçom.
Sim, eu queria mais alguma coisa...
Queria que ela voltasse, queria vê-la mais uma vez. Queria ter tido pelo menos mais uma chance...
Mas era impossível...
Teria de me conformar, precisaria me convencer de que, simplesmente, o tempo passara e enterrara o passado, apagando-o, transformando-o apenas numa sombra enfumaçada onde as recordações se misturavam sem qualquer ligação entre si...
— Mais um duplo — pedi — Infelizmente, é só isto que eu posso pedir, já que você jamais conseguiria trazer para mim uma dose, ainda que pequena, de felicidade...

domingo, 25 de janeiro de 2009

POR UMA JANELA


Por uma razão qualquer vem à minha mente, nesta hora, a oração inicial de “Iracema”: Além, muito além daquela serra que ainda azula no horizonte...
Muito além daquela serra está o meu lugar. S terras perdidas das montanhas do Quebra-Cangalho, o Ribeirão das Pedras, o Rio da Prata, o Rancho do Abandono, meu suína. A sensação de uma ausência inexplicável, a saudade de alguma coisa que não conseguimos definir misturam-se a uma alegria de já ter tido a oportunidade de ter vivido momentos que ninguém mais viveu. Uma estranha sensação de nostalgia e de felicidade.
Onze andares abaixo de mim, a cidade de São Paulo, com toda a sua agressiva monstruosidade derrama-se por quilômetros e quilômetros. Massa inerte de asfalto e concreto, que por acaso me dá de comer, mostra a quem quiser ver que ali está para apagar o homem, tomar a sua individualidade, torná-lo não mais que um número de estatística, transformá-lo em mais uma peça de sua engrenagem assassina.
O ruído de trânsito, de motores, de britadoras, de serras de construção, os roncos de todas as espécies que sobem até meus ouvidos atravessando os grossos vidros espelhados da janela, mais parecem os estertores de morte de uma civilização. Gritos desesperados de buzinas, sirenes (que sempre trazem mau agouro, quer seja da ambulância que, desesperada não consegue varar o trânsito para socorrer alguém, quer seja um carro de polícia indo buscar um pobre em desespero, quer sejam os bombeiros correndo para apagar um incêndio que queima, junto com prédios e pessoas, as falcatruas de algum comerciante bem sucedido, ou mesmo a sirene dos batedores de algum político importante que tem pressa de chegar ao seu departamento, pois tem pressa de enriquecer mais um pouco), semelham os últimos lamentos do moribundo que é o homem nessa batalha inglória contra a padronização a que leva a cidade grande.
Por mais esforço que faça, nada se consegue avistar que não seja feito pela mão do homem, seu autodestruidor criador. Somente ao longe, muito ao longe, pode-se vislumbrar, meio apagada pela poluição, acinzentada ao invés de azulada, pode-se entrever a Serra.
Quantos pensamentos consegue criar uma janela...! Quantas recordações!
Foi através de uma janela, porém numa outra situação, noutro lugar e com outra paisagem, que a Lua, bem cheia por trás de uns pinheiros, veio numa quinta-feira mostrar-me o verdadeiro amor. Uma janela pequena, de madeira, numa sala que falava ao meu coração. Ao meu lado, uma mulher-anjo, um ser extra-terreno que conseguiria tomar conta de mim e domar completamente minhas reações.
Lá em baixo, um grande petroleiro encostava. Sobre a mesa, meu cachimbo repousava no cinzeiro e nossos copos vazios eram uma desculpa para as mãos. Nossos olhos se fitavam ao mesmo tempo em que nossas almas se uniam ainda mais. À nossa frente, dois coqueiros tortos cruzavam-se formando uma janela para o mar. Por essa janela, bem lá longe, no alto da Serra, um “U” formado por uma depressão no perfil do espigão parecia ser o portal do corredor da felicidade. Nosso silêncio dizia-nos que estávamos felizes.Pelo menos naquele instante. Nossos corações sabiam, sem que nós realmente o soubéssemos, que seríamos felizes para sempre.
Foi através de uma janela, pequena, de madeira, que alguém atirou para o jardim todas as poucas coisas que eu possuía, juntamente com sua raiva, desespero e frustração. E, co isso, atirou para dentro de mim a certeza de que eu a teria para sempre comigo, para mim, só para mim.
Da janela do hotel, naquela manhã nublada e úmida, podíamos ver uma cidade nova. Na véspera, você dissera, ao telefonara para o meu quarto, que esta seria a nossa cidade. E, por essa janela eu podia sentir, mais do que ver, um futuro de alegrias e de amor que seria (como foi, afinal) só nosso. Constituir família, sedimentá-la, aumentá-la, mostrar ao mundo que é possível ser feliz, mesmo em condições tão adversas.
A grande janela do terraço deixava ver uma paisagem magnífica. O Vale, meu querido e sonhado Vale do Paraíba, estendendo-se até a Serra, a mesma Serra que aqui de fato azula no horizonte.
A diferença é que a “doce Iracema”, de cabelos negros como a asa da graúna e doces lábios de mel, está aqui, ao meu lado, junto a mim.
Lá longe, agora, está só a Serra.
Minha doce e amada Serra.

sábado, 17 de janeiro de 2009

MACIEL


A recepcionista entrou na sala do chefe do Pronto Socorro e disse:
— Está aí uma senhora que quer falar com o senhor...
É difícil, num hospital conveniado com o INAMPS, que alguém queira falar com o chefe do Pronto Socorro qualquer assunto que não seja uma reclamação.
No entanto, a própria maneira pela qual a tal senhora fora anunciada, indicava que não era esse o caso.
Normalmente, se ela estivesse trazendo uma queixa, a recepcionista logo falaria:
— Tem uma mulher aí querendo falar com o senhor.
É interessante notar que as pessoas do sexo feminino podem adquirir qualificações como “moça”, “menina”, “mulher”, “senhora”, “velha” e outras mais, às vezes até impublicáveis. O emprego dessas qualificações vai depender muito da própria pessoa em si e do nível de respeito que ela é capaz de incutir nas demais.
No caso em questão, deveria haver um bocado de respeito, pois a funcionária do hospital, via de regra mais do que desbocada e muitas vezes até mesmo inconvenientemente debochada, usara o termo “senhora”... O mais alto e mais cerimonioso de todos.
O doutor mandou que se fizesse entrar a tal senhora.
Com um sorriso simpático, ela disse:
— O caso, doutor, é meu irmão. Ninguém mais o agüenta, não dá mais para suportar o seu comportamento.
O médico, já deixando de lado a boa vontade inicial, ia explicar que ali era um hospital geral que, embora mantivesse convênio com o INAMPS, não tinha como atender casos de “comportamento” de ninguém. Ela que fosse procurar um hospital psiquiátrico ou que arranjasse um pouco mais de paciência e de caridade para tolerar o próprio irmão.
Porém, ela não o deixou falar.
Era uma senhora distinta, de seus cinqüenta anos de idade, bonitona e bem vestida, mostrando claramente que tinha posses, que não era “uma qualquer”.
— Já sei o que vai me dizer, doutor — falou ela — Mas também sei que o senhor pode muito bem fazer o que eu quero e o que eu preciso. Mesmo por que já ouvi dizer que o senhor é muito bom e não costuma negar ajuda a alguém necessitado.
— Não vejo como a senhora possa ser necessitada... — falou o médico, já com outro espírito, pois a senhora, sabidamente, tocara em sua vaidade pessoal.
— Não é apenas materialmente que alguém é necessitado, doutor — disse ela — Há outras necessidades que, por vezes, são ainda piores do que a falta de dinheiro...
Tomando fôlego, a senhora continuou:
— Garanto ao senhor que o Maciel não vai lhe dar trabalho. Ele é bonzinho, coitado. Está há uma semana sem comer e o senhor sabe... Ele está muito fraco.
Fez uma pausa para aceitar o cigarro que o médico lhe ofereceu (ele também tinha seus métodos para interromper uma conversa), enquanto perguntava:
— Mas... O que tem seu irmão, dona... dona...
— Margarida, doutor... E, por favor, esqueça esse “dona”. Afinal, não sou tão velha assim!
Catando com a ponta da unha bem tratada uma hipotética fagulha de qualquer coisa sobre o tampo da mesa do médico, ela prosseguiu:
— Meu irmão, o Maciel, não tem nenhum problema, coitado! Só tem um vício... Ele bebe um pouco demais.
— Pronto! — pensou consigo, o médico— Ela quer internar um alcoólatra que, provavelmente é do tipo violento para ela estar se referindo a um “comportamento insuportável”...
Começou a explicar para dona Margarida que era impossível, que o INAMPS jamais aceitaria uma internação desse tipo, que o tratamento de alcoolismo crônico era feito em hospitais especializados, que não havia a menor possibilidade de o tal Maciel ficar internado.
A boa, elegante e simpática senhora, ouviu tudo calada, com uma sombra de pesar no rosto bonito. Quando o médico acabou de argumentar, ela disse, apenas:
— Está certo, doutor... O senhor, realmente está com a razão. Infelizmente, o meu pobre irmão terá de ir outra vez para um instituto de psiquiatria. Coitado!
E, voltando a sorrir, cheia de esperanças, pediu:
— Mas o senhor poderia examiná-lo, não poderia? Ele está tão fraquinho... E tenho certeza que o senhor será capaz de reerguê-lo com uma receita... Tenho escutado tantas coisas boas a seu respeito! Sei que é um médico tão competente...!
Mais uma vez bombardeado em sua vaidade, o médico não conseguiu recusar.
Sim, era mais do que evidente que ele iria ver o Maciel, iria ver se poderia fazer alguma coisa por ele, mas — garantia — de modo algum, poderia interná-lo.
Acompanhou dona Margarida até o ambulatório em que estava seu irmão e viu-o.
Parecia ter mais de sessenta anos, alquebrado, trôpego, trêmulo, cabisbaixo. O aspecto do homem era tão ruim que, para o médico, ele deveria estar numa cadeira de rodas e não ali, sentado num dos bancos da sala de espera, como qualquer outro. Mandou uma enfermeira trazer a cadeira de rodas e ficou surpreso quando ouviu Maciel recusá-la e dizer, com uma voz surpreendentemente firme para um corpo tão carcomido e frágil:
— Nada disso! Não quero que me vejam como se eu fosse um aleijado!
Feita a vontade do paciente, este foi conduzido para um dos consultórios, apoiando-se como podia no braço de sua irmã.
Logo às primeiras perguntas da anamnese e às primeiras manobras do exame físico, já o médico estava convencido de que Maciel precisava mesmo ser internado. Tornava-se urgente um tratamento clínico antes de se pensar numa internação psiquiátrica. Afinal de contas, casa de repouso, manicômio ou hospício, não são lugares para se tratar pneumonias e era isso, justamente isso que Maciel apresentava.
Feita a internação, Maciel foi encaminhado para o leito 16, sob a responsabilidade exclusiva dele, do chefe do Pronto Socorro.
Nos dias que se seguiram, Maciel piorou muito. A febre não abaixava e seu fígado, já completamente falido, não podia metabolizar as medicações tornando o seu tratamento um verdadeiro problema de terapêutica.
Mas o médico não desistiu. Com todo o carinho e dedicação, procurou aliviar o sofrimento do pobre homem e, com isso, começou a surgir, entre os dois, um intenso sentimento de amizade, o relacionamento se aprofundando dia após dia.
É mais do que sabido que a maioria dos alcoólatras, quando em fase de sobriedade, são melancólicos e tristes, mas ao mesmo tempo, simpáticos e cativantes.
Maciel não era exceção a essa regra. Além do mais, ele possuía um espírito afiado e tinha a índole da liderança.
Quando, finalmente o carinho do médico, sua competência e a eficácia dos remédios começaram a fazer efeito, Maciel melhorou.
Mais disposto, não lhe foi difícil dominar a enfermaria.
Era o primeiro a ir ao banheiro, era o primeiro a ser servido, era o que se dirigia aos médicos e enfermeiros para qualquer reclamação, era quem dizia — pasmem! — quais dos outros podiam ou não receber visitas.
Inacreditavelmente, quando chamava a enfermeira (tinha estabelecido um código particular para tocar a campainha), era imediatamente atendido.
Fez com que o mundo, no andar de sua enfermaria, gravitasse em torno do leito 16.
O seu leito.
— Doutor, o senhor pode me dar cinco minutos de seu tempo?
O médico, que já sabia muito bem a duração desses tais cinco minutos, dizia, com um sorriso:
— Espere aí, Maciel... Vou acabar de passar a visita e venho conversar com você.
E ele sempre tinha uma história para contar.
Maciel tinha sido um contabilista. Aos vinte e cinco anos (estava com cinqüenta e cinco), tinha um bom emprego numa firma de óleos vegetais e podia se dar o luxo de sonhar com o futuro.
Tinha três manias: os amigos, o futebol e a namorada. Mourejava no escritório de segunda a sexta-feira, mas no final do expediente, não dispensava a cerveja tomada com os amigos. Só às quartas-feiras é que ele não ia ao bar: era o dia do namoro. Aos sábados, ia com a Rosana a um cinema e, todos os domingos, ia ao jogo. Rara era a vez que fugia a essa rotina e sempre se orgulhava de dizer que era um homem de vida regrada e regular. Ganhava relativamente bem e, uma bela noite de quarta-feira, pediu Rosana em casamento. Falou com os pais da moça e, radiante, marcou a data da cerimônia.
Desse dia em diante, Maciel direcionou todas as suas baterias, drenou toda a energia possível para o famoso dia 12 de setembro, o dia em que Rosana subiria ao altar para se casar com ele. Comprou um carro — usado, é verdade, mas nem por causa disso deixava de ser um carro — mudou-se da pensão em que vivia para uma casinha em Osasco que, diligentemente, ele ia ajeitando aos sábados e domingos, deixando de lado o futebol e o cinema.
Também deixou de ter tempo para a cervejinha com os amigos, esse luxo parecia-lhe dispendioso demais para alguém que está pensando em levar a vida com seriedade, em se casar e constituir família.
Casou-se. Calcificou-se.
Se já era um homem rotineiro, depois de casado, ficou mais ainda. De casa para o escritório, do escritório para casa, nunca saía, não queria mais ouvir falar de cinema ou de futebol e os amigos...
Ora... Maciel não via mais nenhuma graça em ficar conversando horas seguidas, falando sobre mulheres — ele tinha a sua e estava tão satisfeito com ela! — ou sobre política — um tema de que jamais gostara.
Como seria de se esperar com uma vida assim, Rosana logo engravidou e pouco menos de um ano após o casamento, punha no mundo um belo rebento, um Macielzinho que era o orgulho do pai e o desespero da mãe, pois era esta que lhe trocava as fraldas.
Um dia, Maciel chegou com a notícia: tinha sido transferido para o Rio de Janeiro, com um salário quase três vezes maior.
Estava radiante! E, mais alegre ainda, ficou Rosana. Afinal, ela sempre quisera morar no Rio de Janeiro, sempre se encantara com a Cidade Maravilhosa...
Só que havia um pequeno problema. No início, a vida de Maciel seria um pouco agitada demais. Nos três ou quatro primeiros meses estaria percorrendo as sucursais da empresa em várias cidades fluminenses, vistoriando suas escritas e, com isso, ficaria às vezes, uma semana inteira fora de casa. Talvez até mais, pois poderia precisar ir de uma cidade para outra sem nem ao menos voltar para o Rio de Janeiro.
Assim, como não queria que Rosana ficasse muito sozinha, sua irmã, Margarida, iria com eles e, enquanto Maciel estivesse viajando, ela poderia fazer companhia à sua esposa. É claro que Rosana não achou muita graça no fato do marido ter de viajar tanto assim, mas como era para o bem de toda a família, acabou se calando e só reclamou durante alguns dias. Depois, acostumou-se com a idéia e a aceitou.
Mudaram-se para o Rio de Janeiro, para um bom apartamento em Ipanema, o aluguel pago pela firma.
Maciel começou sua maratona: Campos, Bom Jesus, Petrópolis, Três Rios, Resende... Uma porção de cidades. Ficava três, quatro dias em cada filial e, como trabalhava rápido, sempre arrumava um jeito de voltar para casa, sempre conseguia passar o fim-de-semana ao lado de sua Rosana.
Tudo corria bem na vida da família. Margarida, sua irmã, estudava à noite e, durante o dia, ajudava Rosana com os afazeres domésticos, inclusive levando o pequeno Maciel para a praia, para o menino tomar sol e brincar.
Rosana, já por natureza, uma bela mulher, florescera. O clima e o encanto do Rio de Janeiro penetraram-lhe pelos olhos, pelas curvas do corpo gracioso, fazendo com que ficasse ainda mais bonita e desejável.
E Maciel, trabalhando, progredindo sempre, recebendo elogios da Matriz, recebendo aumentos de salário e, obviamente, de serviço. Chegava a passar quinze dias sem poder voltar para casa, tal a quantidade de problemas para resolver nas cidades do interior, tal a carga de responsabilidade que lhe pesava nas costas.
Não tinha telefone em casa e, por isso, não lhe era possível saber notícias todos os dias.
O que, de uma certa forma, foi até melhor...
Enquanto Maciel queimava fosfato em cima de números e verificações, Rosana, na praia, queimava sua pele e ajudava a queimar os fusíveis do coração de certo engenheiro que, morando ali perto, aproximara-se, conversara e sempre estava à sua disposição para o que quer que ela pudesse vir a precisar.
Tantas vezes o cântaro vai à fonte que um dia, ele quebra...
E, com Rosana, não foi diferente.
Uma manhã, Rosana estava indo para a praia, quando o tal engenheiro apareceu, materializou-se, ao seu lado:
— Vai à praia?
Rosana não pode deixar de sorrir. Era mais do que evidente que ela estava indo à praia, afinal de contas, com toda a certeza não iria à Missa assim, de maiô!
Seguiram juntos, conversando, ela comentando que já estava ficando cansada daquela história do marido estar sempre viajando, deixando-a constantemente sozinha.
— Ele está mais tempo fora do que dentro de casa! — terminou.
Bom carioca, desses que não perdem uma só oportunidade, o engenheiro — Mauro era o seu nome — apanhou o fio e começou a tecer a sua malha, batendo e rebatendo sobre o tema “solidão insuportável”.
Acabou praticamente se convidando para lhe fazer companhia à noite, enquanto Margarida estivesse na escola.
E assim acabou acontecendo.
Margarida, de namoricos com um colega, atrasou-se. Mauro aproveitou e...
Houve a primeira vez.
Na matemática, depois do um, vem sempre o dois. No amor, especialmente no amor proibido, depois da primeira vez, vem sempre a segunda, a terceira, a quarta, a enésima. Afinal, o amor proibido acaba por se transformar num vício mais sério que o mais pesado dos tóxicos... E, o que é pior, acaba por deteriorar o amor primeiro, aquele do papel passado em cartório e abençoado na igreja.
De repente, Rosana se descobriu não mais suportando o marido, mesmo nas poucas horas em que ele conseguia ficar em casa.
Tentou disfarçar, mas muito depressa compreendeu o quanto é difícil e complicado esconder o desamor.
Não tinha como dizer uma palavra carinhosa para o marido, não havia como deixar de transparecer sua insatisfação. Procurava ficar o mais longe dele que pudesse e, à noite, era uma autêntica artista em matéria de arranjar desculpas para se recusar.
Até que um dia, o inevitável flagrante aconteceu.
Maciel teve um problema com o automóvel e, tendo saído de casa logo após o almoço para ir a Campos numa viagem programada para dez dias, decidiu voltar e seguir na manhã seguinte. Passaria mais uma noite em casa e isso não era nada ruim.
Assim, pouco antes de nove horas da noite, chegou à sua casa.
Ingênuo, nada tinha percebido de anormal, até então, no comportamento da esposa e, assim, imaginava que esta fosse ficar alegre ao vê-lo, que fosse sorrir e, toda satisfeita, se dispusesse a lhe preparar o jantar, ainda que fora de hora.
Meteu a chave na fechadura e entrou.
A cena que presenciou prostrou-o, pregado ao chão com o queixo a lhe bater pelo meio do peito, a alma em frangalhos.
Não podia ser verdade...
Não podia acreditar no que seus olhos estavam vendo.
Rosana, nua, ainda estava enroscada no colo de um homem, também nu...
Um homem que não era ele, nem sequer parecido.
Os dois, ao perceberem a presença de Maciel, tiveram a reação mais do que esperada de se esconderem, de tremer, de dizer o famoso “posso explicar tudo”...
Mas, Maciel não queria explicações.
Não precisava de explicações.
Ele não disse nada, não fez nada.
Apenas olhou.
Rosana e o engenheiro Mauro entenderam.
Era a rendição que Maciel estava assinando com as lágrimas que lhe escorriam pelas faces.
Sempre em silêncio, fez meia-volta e deixou a casa. Perambulou pela cidade como um autômato e a manhã foi encontrá-lo caído em um banco em Laranjeiras, perto do Palácio do Governo, ainda bêbado.
Desde esse dia, nunca mais aprumou.
Bebendo sempre, cada vez mais, acabou por sublimar a traição, mas em troca, perdeu o emprego, os amigos, o dinheiro.
Talvez até tivesse esquecido a esposa, mas jamais poderia esquecer o que acontecera, jamais deixaria de lembrar daquela cena.
E bebeu... Bebeu como uma esponja por quase trinta anos.
Agora, no final da vida, de uma vida que fora destruída logo em seu começo, ele sentou na beira da cama e disse para o médico:
— Sabe, doutor... quando eu trabalhava como contador, lá em Osasco tinha um salão de sinuca... Ah! Que tempinho gostoso...!

sexta-feira, 9 de janeiro de 2009

O ENCONTRO


— Desculpe... Você não é o José, casado com a...
Ela franziu as sobrancelhas, apertou um pouco os olhos e sorriu, sem jeito, depois de um inútil esforço para se lembrar daquele nome.
Fui em seu auxílio:
— Sim... Mas não se preocupe. Já não estou mais casado com ela há muito tempo.
— Você não está lembrando de mim...
O tom de voz era queixoso, sua fisionomia denotava tristeza e uma profunda decepção
Afinal, não era nada elegante eu não a reconhecer.
Mas, ela estava enganada.
Era mais do que evidente que eu me lembrava dela, como poderia me esquecer?
Só que...
Os anos tinham passado, lentos ou rápidos, isso não importa, o fato é que eles tinham passado inexoráveis e cruéis para nós dois.
Ela estava bem diferente.
Seus olhos, é verdade, ainda conservavam aquele mesmo brilho de antes, seu sorriso ainda mantinha aquele ar de desafio, seus lábios continuavam carnudos e sensuais, lábios sinceros que me recordavam muitos e muitos beijos...
É certo que havia algumas marcas do tempo.
Rugas discretas nos cantos dos olhos, alguns vincos na testa e as pálpebras um pouco mais pesadas denunciavam os momentos ruins que lhe tinham acontecido.
Momentos em que ela talvez não tivesse tido um ombro para encostar a fronte e derramar algumas lágrimas aliviadoras enquanto ouvia palavras macias de reconforto.
Momentos que eu certamente teria gostado de viver com ela, de ter estado presente...
Não.
Eu jamais poderia esquecê-la...
— Sente-se — convidei — Tome um drinque comigo... Ficarei feliz relembrando os velhos tempos.
Ela sorriu, hesitou por um breve instante e, com um gesto que quase me pareceu ser de renúncia, aceitou.
— Pode ser uma boa idéia — disse — Talvez assim você refresque um pouco a sua memória...
E, antes que eu pudesse protestar, antes que eu tivesse oportunidade de lhe dizer que não seria preciso nenhuma espécie de manobra para fazer ressuscitar dentro de mim aqueles sentimentos que há tanto tempo estavam dormentes, ela completou:
— Vamos ver se você lembra mesmo... Quero tomar o meu drinque de sempre.
Sorri, vitorioso.
Chamei o garçom e pedi que trouxesse mais um uísque para mim e uma Margarita para ela.
Notei um lampejo de satisfação em seu olhar e, vendo que ela apanhava um cigarro, apressei-me em acendê-lo.
Como antes, ela o pôs no canto da boca, tragou uma baforada generosa e olhou para mim.
Sim. Ela ainda era muito bonita...
A juventude passara, aquele frescor dos vinte anos desaparecera e naquele rosto que outrora contava, ainda que em silêncio, todos os sonhos e todo o anseio pela vida, havia uma maturidade que, ao mesmo tempo que me surpreendia, também me deixava triste, consciente que ficava de que, se ela mudara, o mesmo teria acontecido comigo, também para mim, o tempo teria sido inexorável e teria deixado suas marcas.
Talvez, até mesmo mais fundas, mais pronunciadas...
Ela, por acaso, não manifestara uma certa dúvida ao se aproximar? Não perguntara, insegura de suas palavras, de sua memória, se eu era o José?
O José, aquele mesmo José que quase um quarto de século atrás, a tivera em seus braços, a beijara sem se preocupar com as lágrimas, em um adeus?
Aquele mesmo José que a amara, que lhe jurara fidelidade, que dissera coisas, que prometera tudo e, no fim...
Tinha sido há muitos anos...
Um quarto de século, talvez.

.x.x.x.

Era um fim de tarde, de uma bela tarde de primavera de um ano que não me lembro, já perdido no vazio do tempo, e ela vinha caminhando pela calçada naquela cidade de interior onde eu tinha ido parar nem sei por qual razão ou motivo.
Morena, os cabelos muito lisos e brilhantes, caíam-lhe sobre os ombros, trazendo-me à memória a melodia de Índia.
Passou por mim, deu-me tempo apenas de ver que me lançava um olhar muito rápido, arisco, fugidio.
Porém, foi tempo suficiente para me fazer sonhar.
À noite, durante o footing — sim, o final da década de 60, ainda era o tempo do footing na maioria das cidades de interior: as moças caminhavam pela praça da Matriz no sentido horário e os rapazes no sentido contrário; quando a empatia surgia, um sorriso numa primeira volta, uma piscadela na segunda, um breve cumprimento na terceira e, na quarta volta, já era permitido interromper a marcha por alguns instantes e trocar algumas palavras, normalmente apenas para marcar um encontro no dia seguinte — vi-a outra vez.
Estava linda, metida num vestido decotado que lhe realçava as formas e a feminilidade.
Sorrimo-nos, piscamo-nos, cumprimentamo-nos e...
— Gostaria de me encontrar com você amanhã...
— Saio do colégio às cinco. Hoje, quando o vi, eu estava indo para minha casa.
— Então às cinco.
— Às cinco.
Até foi muito, para uma primeira vez.
No dia seguinte, pontualmente às cinco horas, eu lá estava, à porta do imponente Ginásio Monteiro Lobato, à sua espera.
Ela apareceu, sorriu, veio para perto de mim e começamos a caminhar em direção ao Largo da Estação.
Falamos aquelas banalidades que tão bem caracterizam um encontro desse tipo, ela me contou que estava no terceiro ano da Escola Normal, em pouco mais de dois meses estaria formada e, no ano seguinte, já começaria a lecionar.
— E você? O que faz?
Disse-lhe que já estava na Faculdade, verdade que ainda no começo, e que faltava muito até poder começar a trabalhar e a conquistar minha independência.
— Podemos marcar um encontro para a noite?
— Na praça?
— Não. Em outro lugar... Gostaria de poder estar sozinho com você.
Ela ficou em silêncio pior alguns momentos, olhou-me de soslaio com um sorriso a lhe iluminar o rosto.
Por fim, disse:
— Está certo. Também não gosto de muita gente por perto.
— Onde, então?
Mais uma vez, ela demorou a responder.
Notei um certo rubor em suas faces, quando ela me disse:
— Hoje à noite irei a uma festinha de aniversário. Na rua Duque, sabe onde fica? A festa será numa casa grande, com o portão de grade...
— Estarei lá.
— Às nove, está bem? Preciso ficar um pouco na festa, pelo menos...
Sorri.
Sua frase, deixando bem clara uma segunda ou até terceira intenção, fez com que meu coração batesse mais rápido, cheio de esperanças.
Que não se mostraram vãs...
Às nove horas, ela surgiu no portão, olhando para os lados, ressabiada.
Pisquei os faróis do carro e abri a porta para que ela entrasse.
— Mas... de carro?
— O que é que tem?
Ela deu de ombros e partimos em direção à barranca do rio.
Não havia muito o que conversar mas, em muito pouco tempo descobrimos que havia muito o que fazer...
Ela era quente, carinhosa, voluptuosa...
Seus seios, túrgidos e frementes, tinham o exato tamanho de minhas mãos e seus lábios, ansiosos por beijos, cheios de uma sensualidade quase animal, esmagaram-se incontáveis vezes contra os meus.
Não foi preciso insistir muito para que ela me permitisse palpar suas coxas e, daí à mão subir um pouco mais, foi um passo curtíssimo.
Não posso garantir que tenha sido recíproco, mas percebi o que acontecera alguns minutos depois quando, ainda ofegante, ela me disse:
— Serei sua para sempre...

.x.x.x.

Os anos passaram, o tempo deixara marcas, cicatrizes terríveis, lembranças amargas que se sobrepuseram às doces e que as apagaram...
— Você não mudou — falou ela, sem que eu conseguisse perceber se havia ou não algum sarcasmo em sua frase.
Sorriu e arrematou, cantarolando a velha música:
— "Você está bem, disposto..."
— "Também sofri..."— respondi no mesmo tom.
— "Mas não se vê no rosto..."— continuou ela.
Não era verdade.
Podia constatar isso todos os dias pela manhã, sem que ninguém precisasse dizer coisa nenhuma. Bastava-me ver a imagem que o espelho devolvia, não tinha necessidade de mais do que ver os cabelos brancos que surgiam, cada vez mais numerosos em minhas têmporas, as rugas que faziam meu rosto mais amargo, mais triste, menos esperançoso...
— Também me separei — murmurou.
Eu não queria mas senti uma pontada no coração.
Esperava que ela me dissesse que sua vida estava indo bem, que estava feliz e realizada, que se encontrara, afinal, a despeito de tudo.
Mas não...
Ela também sofrera com uma ruptura, ela também sofrera por causa de uma separação.
E depois...
O retorno à eterna busca...
Teria tido sorte, por fim? Teria encontrado a outra metade, o complemento certo para a felicidade?
Ou teria acontecido com ela o mesmo que me acontecera?
Talvez...
Se eu não tivesse sido tão medroso e egoísta vinte e poucos anos atrás...

.x.x.x.

Voltamos a nos encontrar no dia seguinte, no outro e no outro.
Depois, tive de ir embora, precisei voltar para a Capital.
— Você vai me esquecer...
— De jeito nenhum! Como poderia...?
— Jure que vai voltar...
— Juro!
Não tive tempo de cumprir o juramento.
Dez dias depois, plena quinta-feira, acordei com a campainha da porta tocando.
Era ela.
— Você!
— Vim preparar seu café da manhã...
Preparou também o almoço, o jantar, o desjejum do dia seguinte e todas as refeições de muitos outros dias, daí para a frente.
— Moro sozinho... Fique comigo, não quero que vá embora.
E ela ficou.
De dia, depois de cuidar de tudo em casa, ia dar aulas num colégio ali perto.
E à noite...
Bem...
À noite ela era integralmente minha, entregava-se doidamente às minhas fantasias e aos meus caprichos, realizava-me, satisfazia-me.
Até que um dia, cerca de três meses depois, alguns colegas decidiram passar o fim-de-semana em Ubatuba.
— O Zé? Não! O Zé está casado...! Nem vamos convidá-lo!
Ouvi...
Ouvi e comecei a pensar, passei de repente a perceber que era verdade, eu estava fazendo uma vida de homem casado... sem o ser!
— Ainda sou muito novo... Não posso me amarrar desse jeito!
Nem voltei para casa. Da Faculdade, segui com os colegas para Ubatuba.
Voltando, na segunda-feira à noitinha, fiz vista grossa para as lágrimas que ela derramava, fiz careta ao ouvir suas queixas e ri quando ela disse:
— Você poderia ter pelo menos um pouco de consideração! Nem me avisou!
Olhei para ela e perguntei:
— E por que deveria avisá-la? Será que também teria de pedir autorização?
Ela não respondeu.
No dia seguinte, quando voltei da Faculdade, ela não estava mais.
Depois disso, encontrei-a ainda duas vezes: uma, quando ela apareceu para me devolver as chaves do apartamento e deixar seu endereço e outra, a última, quando fui à sua casa, um bonito apartamento em Perdizes, para lhe levar umas cartas que tinham chegado em meu endereço.
Nada falamos, praticamente.
Apenas aceitei um café e, ao me despedir, desejei-lhe sorte.
— O mesmo, para você — murmurou ela, quando eu já ia entrando no elevador.

.x.x.x.

— Eu o procurei — falou ela, em voz baixa — Deus sabe como o procurei!
— Estava fora — repliquei quase num sussurro — Nos Estados Unidos... Não poderia ter adivinhado.
— Precisei de um amigo — prosseguiu ela, como se não me tivesse escutado — Fiquei desesperada, à beira de um colapso nervoso.
Seus olhos me recriminaram enquanto ela dizia:
— Se o tivesse encontrado, acho que as coisas teriam sido mais fáceis...
Já eu não tinha tanta certeza assim.
Pelo que ela estava me contando, sua separação coincidira com a minha e, naquela ocasião eu não tivera forças nem para mim mesmo, como poderia tê-la apoiado? Como poderia ter servido de esteio para quem quer que fosse?
Olhei suas mãos.
Continuavam finas, bonitas, delicadas...
Claro que a pele já estava um pouco mais frouxa, já se notavam aquelas manchas traiçoeiras que os médicos chamam pomposamente de "manchas hipercrômicas” e que o leigo, muito mais sábio, classifica de "manchas da velhice"...
Mas eram as mesmas mãos...
As mãos que deslizaram pelo teclado do piano em minha casa e que, muitas e muitas vezes, me acariciaram os cabelos, me exploraram o corpo em carinhos alucinantes, transportando-me para um universo de felicidade inigualável...
Ela terminou seu drinque, fitou-me, olhou em seguida para o relógio e disse:
— Tenho um compromisso importante... Preciso ir embora.
Levantou-se e eu a imitei.
Aproximou-se de mim, beijou-me as faces fazendo-me sentir o mesmo calor de antigamente ao contato com sua pele e falou:
— Vamos nos encontrar amanhã, está bem? Acho que será bom para nós dois revivermos aqueles instantes tão bons que já tivemos.
Disso eu tinha certeza.
— Ainda moro no mesmo lugar... Lembra onde é? Tem o telefone?
Não esperou que eu respondesse.
Era mais do que evidente que eu tinha a obrigação de ter o seu número de telefone, seu endereço, uma maneira qualquer de encontrá-la.
Beijou-me mais uma vez, desta feita sobre meus lábios e se afastou.
Eu fiquei ali, de pé, ao lado daquela mesa de bar, vendo-a passar por entre as mesas e ganhar a rua.
Ainda sentia o gosto de seu beijo quando sentei novamente e pedi ao garçom que me trouxesse um uísque duplo.
Era o adeus...
O adeus definitivo, o fim de tudo.
Não haveria encontro algum no dia seguinte e, era lógico, nunca mais nos veríamos.
O garçom trouxe a bebida e, enquanto eu entornava o seu conteúdo garganta abaixo desejando que fosse um copo do mais potente raticida, pensei:
— Meu Deus... Porque a pusestes em meu caminho logo hoje? E como é que eu vou fazer para lembrar seu endereço se nem sequer consigo me lembrar de seu nome?!
Olhei para o fundo do copo já vazio.
Não...
A resposta a essa terrível e avassaladora pergunta não estava ali.
Chamei novamente o garçom.
Talvez no fundo de um outro copo... Talvez ainda não estivesse tudo perdido.
Afinal, eu me lembrara de tantas coisas relacionadas a ela... Quem sabe, com uma ajudazinha...
Quem poderia garantir que ela não voltaria?
E quem poderia dizer que seu nome não me viria à mente junto com os vapores do uísque?
— Mais alguma coisa, Doutor José? — indagou, solícito, o garçom.
Sim, eu queria mais alguma coisa...
Queria que ela voltasse, queria vê-la mais uma vez. Queria ter tido pelo menos mais uma chance...
Mas era impossível...
Teria de me conformar, precisaria me convencer de que, simplesmente, o tempo passara e enterrara o passado, apagando-o, transformando-o apenas numa sombra enfumaçada onde as recordações se misturavam sem qualquer ligação entre si...
— Mais um duplo — pedi — Infelizmente, é só isto que eu posso pedir, já que você jamais conseguiria trazer para mim uma dose, ainda que pequena, de felicidade...

sábado, 3 de janeiro de 2009

RUGAS NO ROSTO


Ela não conseguiu esconder a surpresa e a satisfação por tornar a vê-lo.
Ainda mais naquele hotel de Campo Grande, uma cidade para ela totalmente desconhecida, onde não conhecia ninguém e portanto, sem qualquer perspectiva de distração mais interessante do que a TV, logo mais, quando subisse para seu apartamento.
Pareceu-lhe, é verdade, que ele demorava um pouco a reconhecê-la, chegou a sentir um aperto no estômago.
— Será que mudei tanto assim?
Foi com alívio (e por que não dizer também, com grande felicidade?) que o viu sorrir e, enquanto pedia licença aos companheiros de mesa, levantou-se para vir cumprimentá-la.
— Marlene! — exclamou, estendendo a mão — Que coisa boa encontrar você por aqui!
Ficou em sua mesa por cerca de cinco minutos, pediu notícias, falou como sempre, as suas banalidades. Depois, desculpou-se muito, explicou que estava para fechar um grande negócio com aqueles senhores e por isso, não podia deixá-los sozinhos.
— Você há de compreender, Marlene... Eles podem se ofender. E é uma transação bem grande, muito importante para mim. Mais tarde ligo para você e, ainda hoje, vamos nos divertir, lembrar os velhos tempos.
Ali mesmo, no guardanapo, anotou o número do apartamento — 72 — em que ela se encontrava e, mais uma vez prometendo ligar, afastou-se.
Marlene terminou seu jantar e, ao se levantar para sair do restaurante, viu com o canto dos olhos que ele a estava observando. Fez um ligeiro sinal de despedida e deixou o restaurante.
Fazia dez ou doze anos que o encontrara pela última vez e, lembrava-se bem, esse encontro significara muito para ela.
Fora diferente de todos os outros apesar de, em sua essência mais primitiva, ter sido absolutamente idêntico a qualquer dos anteriores.
Deitou-se na cama apenas com as roupas íntimas (fazia tanto calor que o ar condicionado não resolvia nada), acendeu um cigarro e ali ficou, olhando para o teto, pensativa.
— É mesmo... Que coisa... Porque será que todas as vezes que o encontro, tudo é tão igual? E, o que é pior... Porque será que fico sempre tão ansiosa por um novo encontro?
Levantou-se, serviu-se de uma dose de uísque no Frigobar e, enquanto balançava os cubos de gelo dentro do copo, seus pensamentos transportaram-na até o dia em que o conhecera.

.x.x.x.

Eram ainda estudantes e tinham ido a uma festa.
Acharam-se mutuamente interessantes tanto quanto ambos acharam a festa sem graça e, embalados pelo álcool, foram fazer a ronda das boates.
Na verdade, por mais que se esforçasse, ela lembrava de muito pouca coisa daquela noite.
Só uma ou outra frase trocada entre copos de uísque, uma ou outra cena, já embaçada pelo tempo e prejudicada pela quantidade de bebida então ingerida.
— Você fala pelos cotovelos!
— Mas... Diga-me: há outra coisa para fazer?
Logo descobriram que havia.
O som alto da boate obrigava-os a se falar muito de perto, forçava uma aproximação de rostos, de bocas...
Ela pode sentir-lhe o hálito, havia um cheiro adocicado provocado pelo tabaco do cachimbo, deu-lhe vontade de saber se o gosto de sua boca também era doce...
E era.
Assim como suas mãos eram doces e macias, percorrendo suas coxas, insinuando-se por sob a saia, acariciando-a em suas partes mais sensíveis, já muito úmidas e latejantes.
Sentiu que ele afastava a beirada da calcinha e percebeu, já quase num delírio, seu dedo alisando-lhe os pelos...
Não foi preciso muito mais para que fossem para a cama num daqueles hotéis de alta-rotatividade da Bela Vista, e foi preciso menos ainda para que esquecessem que tinham ido.
Fora uma aventura, simplesmente uma aventura.
Alguns meses depois, tornaram a se encontrar em um café da cidade, naquela hora perigosa de final de expediente.
Carona oferecida, carona aceita que, evidentemente, terminou em mais um hotel de péssima fama, após a escala rotineira em um restaurante da moda e em uma casa de jazz.
Ponto em comum: ambos adoravam jazz e blues.
E, outro ponto em comum, ambos tinham uma sede intensa de carinho, ambos sentiam a necessidade imperiosa de se explorar de todas as maneiras, de descobrir novas e cada vez mais deliciosas sensações...
Juntos, um com o outro, aprenderam que o sexo não é feito apenas daquela maneira tradicional e muito menos às pressas, como se estivessem o tempo todo com medo de serem surpreendidos.
Surpreendidos por quem, afinal de contas?
Quem poderia ir procurá-los naquele lugar? Quem poderia ter a curiosidade ou mesmo a necessidade de ir descobri-los daquele jeito, cabeças entre pernas, fluidos materiais e espirituais misturados no auge de um prazer que até bem pouco tempo atrás apenas imaginavam, julgando-o ainda pecaminoso e proibido?
Depois dessa segunda vez, ela passou um bom tempo sem o ver, jurando que o esqueceria, que não o amava e que não mais se deixaria utilizar por ele, como se fosse um simples objeto de consumo. Porém, guardou e carregava sempre consigo, uma caixinha de fósforos, lembrança daquela noite, da casa de jazz onde ele, acariciando seus seios por sob o casaco que lhe emprestara talvez justamente com esse propósito, sugerira uma noite inesquecível, plantara-lhe a idéia daqueles momentos de sonho e de prazeres tão intensos.
Não se pode dizer que ela não tenha se esforçado: outros homens vieram, passaram por sua vida, amores efêmeros, fugazes, falsos, que ainda mais depressa se desmanchavam quando ela se lembrava dele.
Era tão diferente...
Tão carinhoso!
Ela, profissional competente, tornara-se procuradora de uma grande empresa e seu trabalho a absorvia, fazia-a viajar com muita frequência.
Recebeu uma incumbência que a levou ao Rio de Janeiro.
Instalou-se no Hotel Olinda e, à noite, viu-o no bar.
Tentou evitá-lo, procurou disfarçar, fingiu não o reconhecer mas, em vão: acabaram por se cruzar, beijaram-se.
Claro...
Foi apenas aquele beijo casto de duas pessoas amigas que se reencontram, em ambas as faces, distâncias física e áurica mantidas...
Mas, talvez fosse exatamente uma questão de auras...
Ao convite para um drinque, ela não se esquivou.
Como também não se esquivou quando ele começou, muito mansamente, muito docemente, a lhe acariciar as costas, depois as coxas...
Um breve e fugidio toque em seus seios...
A sugestão de dividirem a mesma cama mais uma vez, foi consequência óbvia , absolutamente inevitável e...
Irrecusável.
Amaram-se novamente.
Ele se confessou mais maduro, mais consciente, menos estouvado.
Ela constatou que ele continuava a ser o melhor de todos os amantes, o único que conseguia fazê-la chegar realmente ao ponto culminante da escalada em busca do prazer máximo.
Mas...
Faltava algo.
Ela percebia, sentia, sabia...
Estava faltando alguma coisa.
Segurança? Uma promessa, que fosse, de estabilidade?
Amor?
Ela jamais saberia responder.
Ele, tampouco.
No dia seguinte, fazendo das tripas coração, conversou seriamente com ele.
Despediram-se, convencidos ambos de que aquela tinha sido a última vez.
Passou-se um ano, longo, lento, marcado por uma cansativa e infrutífera busca da felicidade.
Ela definhava a olhos vistos e revoltava-se cada vez que se conscientizava do motivo.
— Afinal, tenho plena convicção de que não o amo!
Quis o Destino que ela precisasse voltar ao Rio de Janeiro.
Já para não despertar inúteis e dolorosas recordações, escolheu outro hotel, não mais em Copacabana.
— O que preciso fazer é no Centro, não há por quê me hospedar em Copacabana, nem mesmo há qualquer razão de passar por lá.
À noite, acompanhando um casal amigo, foi a um restaurante.
Estava feliz, sem preocupações, seus negócios estavam caminhando bem, podia e queria se distrair um pouco.
Mas, quis o Destino, esse brincalhão, que ela o visse, sozinho em uma mesa, bem no fundo desse restaurante.
Por um momento, pensou que também tinha sido vista, quando ele ergueu os olhos do jornal que estava lendo.
Mas não...
Ele apenas estava querendo chamar o garçom.
Ela teve vontade de ir embora, daria uma desculpa qualquer aos amigos que a acompanhavam, pegaria um táxi e correria a se refugiar em seu quarto de hotel.
Mas, achou que seria muito desagradável, muito mal-educado e...
Uma imensa covardia de sua parte.
Ficou e, quando terminaram o jantar, ele ainda estava lá, absorto em sua leitura, tomando o café em pequenos goles e fumado um cigarro com toda a calma do mundo.
Ela voltou para o hotel.
Ainda pensava nele, na estranha e terrível coincidência que fazia com que se encontrassem em todos os lugares.
— Até parece coisa feita!
Sentia-se satisfeita por ter conseguido vencer a tentação de correr ao seu encontro, de se atirar em seus braços, de dizer que estava morrendo de saudades.
— ... a boca molhada e ainda marcada pelo beijo teu...
Suspirou.
Na verdade, uma pena...
Estava tirando a pintura do rosto quando o telefone tocou e, antes mesmo de atendê-lo, já sabia que era ele.
Recebeu-o em seu quarto com uma indescritível felicidade e, ao mesmo tempo, com uma incomensurável raiva de si mesma.
— Como você me achou?
— Foi fácil segui-la.
Não se permitiram mais perguntas.
O tempo parecia ser curto demais para tudo quanto queriam fazer, para deixarem correr sem freios e sem limites todo o desejo que sentiam, para descarregar a volúpia que os invadia e que se manifestava nas mais loucas formas de materializar seus impulsos.
Parecia não haver mais o que tentar de novidades, parecia terem esgotado por completo a imaginação lúdica e lúbrica...
E, no entanto, como fruto de um desejo sem qualquer conceito de finitude, novas posições surgiam, novos prazeres, novas sensações...
Ficaram juntos durante toda a semana, amaram-se apaixonadamente e juraram-se amor eterno, garantiram-se que jamais se separariam novamente, que a partir daquele instante, haveriam de dividir a vida, seus prazeres, suas delícias.
Até que...
— Preciso ir à Alemanha neste sábado.
— Quando é que você volta, querido?
Ela o acompanhou ao aeroporto, ficou lá chorando como esposa-de-soldado-que-vai-à-guerra enquanto o avião subia e sumia de vista.
Desde então, todos esses anos, sem nenhuma notícia.

.x.x.x.

Levantou-se, foi apanhar mais um uísque.
— Pelo menos, ele terá de me dar uma satisfação.
Ela sofrera muito quando, um mês após sua partida para a Alemanha, começara a contar os dias, as semanas, depois os meses, sem qualquer manifestação por parte dele, do homem que ela — agora sabia — amava.
Seis meses foram precisos para se convencer de que tinha sido preterida.
E, na verdade, jamais se recuperara de todo, da mesma maneira e na mesma medida, que jamais deixara de ter uma certa esperança.
— Se ele não me quisesse mais, não teria vindo até minha mesa, esta noite.
Sorriu, a velha chama voltando a se acender em sua alma.
— Talvez ele tenha voltado da Alemanha e precisado viajar outra vez... Pode ser que tenha passado por São Paulo justamente quando eu também estive no exterior...
Com carinho, procurava encontrar uma desculpa para seu homem, tentava amenizar o penar de todos aqueles anos.
— Mas... Bem que ele poderia ter escrito uma carta... Um postal, pelo menos!
Encheu mais uma vez o copo, sorriu.
— É bem verdade que eu também não escrevi... E sabia muito bem como encontrá-lo!
Já começando a sentir sono, teve um último pensamento antes de se deixar adormecer:
— Será que ainda há tempo para reparar nossos erros? Se você me der uma chance, amor, hei de fazer o máximo para torná-lo o mais feliz de todos os homens!
Acordou no fim da manhã, com o sol matogrossense invadindo o seu quarto, a boca seca, a cabeça doendo.
— Ele não ligou...
Já terminava o almoço quando ele chegou.
Sorrindo, aproximou-se de sua mesa mas, não sentou.
— Desculpe por ontem à noite, Marlene... Mas é que só consegui me liberar muito tarde. Imaginei que já estivesse dormindo.
À insinuação que ela fez para que jantassem juntos nessa noite, sorriu, consternado.
— Sinto muito, mas não posso. Hoje é impossível. Imagine que dentro de meia hora, preciso me encontrar com o presidente da empresa que estamos encampando. Fecho o negócio justamente hoje à noite.
Separaram-se pouco depois e ela ficou por ali, à beira da piscina, sem saber exatamente o que estava fazendo ainda em Campo Grande, uma vez que, por causa de seus negócios, já poderia muito bem ter ido embora.
Sentia-se mal, sabia que alguma coisa estava errada, que algo não se encaixava.
Não queria subir para o quarto onde, romanticamente, havia sonhado estar com ele. Não suportaria a solidão, o ambiente impessoal e frio daquele apartamento de hotel.
Viu-o atravessar o hall, elegante, bem vestido, a camisa folgada e muito colorida, emprestando-lhe um certo ar de turista americano.
— Não é possível que ele vá a uma importante reunião de negócios vestido dessa maneira!
Escutou, sem querer acreditar em seus ouvidos, quando o recepcionista lhe disse:
— Doutor, sua noiva já o está esperando...
Com autêntico desespero, ela o viu tomar pelo braço aquela bela mulher de vinte e poucos anos que chegara havia dez minutos e que estava sentada em uma das poltronas do saguão. Ela notara muito bem essa moça — chegara a invejar sua beleza, a pele lisa de seu rosto, as formas perfeitas de seu corpo e a superioridade consciente com que olhava o mundo.
Superioridade de quem sabe que tem o tempo todo pela frente...
Ele a tomou pelo braço, sorriu enternecido, beijando-a como ela, Marlene, esperaria ter sido beijada.
Sentindo uma dor surda na cabeça e um punhal a lhe atravessar o coração, subiu para o quarto.
Não conseguiu evitar as lágrimas e não conseguiu deixar de se olhar no espelho, por mais que tentasse evitar a visão de sua imagem refletida no vidro frio e cruel...
Não queria ser obrigada a reconhecer a verdade.
Estava fora do páreo e sabia-o muito bem.
Viu seu rosto, as lágrimas rolando pelas faces pintadas, os olhos com as bolsas já bem nítidas, a tintura que escondia os fios de cabelo branco.
Com dedos trêmulos, palpou suas faces, tentou inutilmente esticar a pele que já se enrugava ao redor dos olhos e nos cantos da boca.
— Estou uma velha! Sou uma velha!
Durante o jantar, tagarelando com a bela moça que estava ao seu lado, ele viu embarcarem em uma ambulância, um corpo amortalhado.
Chamou o garçom, pediu informações.
— Foi aquela senhora do apartamento 72. Tomou uma overdose de sedativos.
Ele deu de ombros.
Voltou a abraçar a moça, beijou-a mais uma vez.
Em sua mente, alguma coisa vagamente lhe dizia que aquele número de apartamento lhe era familiar.
Apenas vagamente...
Sem qualquer importância maior

domingo, 28 de dezembro de 2008

ESTOQUE ESGOTADO



Ele era o que se poderia chamar de autêntico boêmio.
Não havia noite que não encontrasse meia dúzia de amigos e que não fosse para um bar qualquer tomar uns drinques, contar piadas e — por que não? — cantar um sambinha.
Dizia que era feliz assim, que não conseguiria jamais conceber um outro ritmo de vida e que, em resumo, não fora feito para a vida doméstica, para a pacata vida dentro de quatro paredes e de um coração.
Mas, toda araruta tem seu dia de mingau e com Luiz não poderia ser diferente.
Num final de semana, durante uma festa em casa de um de seus muitos amigos, ele a conheceu.
Chamava-se Margarida, era morena, tinha um sorriso encantador e...
Simplesmente o cativou.
Conquistou-o por completo, dominou-o, domou-o, compreendeu-o e, em menos de um mês, lá estavam eles diante do Juiz-de-Paz — com padres e freiras ele não queria histórias — casando-se, constituindo um lar.
Para a turminha de boêmios foi uma perda. Para os proprietários de muitos bares ali na região da Bela Vista, foi uma significativa diminuição na receita pois, seguramente, três quartos do salário de Luiz era sumariamente transformado em uísque e petiscos todos os meses.
E olhe que, como advogado, ele não ganhava pouco!
Mas, amigos que todos eram, por mais falta que dele sentissem, estavam felizes por vê-lo realizado, por vê-lo sorrir satisfeito, quando dizia:
— Agora estou sossegado. Sosseguei o pito, não quero mais saber de farras. Estou contente com o que tenho lá em casa.
Contudo, Vox populi, vox Dei e nada é mais verdadeiro do que aquilo que o povo diz.
E o povo costuma afirmar que pau que nasce torto, não tem jeito, morre torto.
Luiz começou a ficar melancólico.
Era feliz, está certo, sentia-se muito bem em casa, em companhia de sua Margarida mas, não podia escutar uma música de Sílvio Caldas ou de Agostinho dos Santos que logo lhe vinha uma estranha e terrível vontade de chorar, um desejo agudo de se isolar do mundo, de ficar sozinho, recolhido apenas às suas lembranças, às recordações daquela época em que, madrugada alta, ele e os amigos ficavam cantando pelos bares, comendo coxinhas de galinha de aspecto e sabor duvidosos e tomando uísque comprovadamente falsificado.
Não demorou para perceber que o que lhe estava faltando era a boêmia, era o convívio com os amigos, o uísque vagabundo bebido em companhia de vagabundas e ao som desafinado de vozes já bem embotadas pelo excesso de nicotina e álcool.
Mas ele não poderia jamais dizer isso para a Margarida.
Ela não compreenderia e isso ele tinha certeza.
Mesmo porque, ainda na época — muito curta, é verdade — de namoro, ela deixara claro que não era do feitio de admitir que ele se dividisse. Ou ela, ou a boêmia, ele que escolhesse.
E Luiz escolhera Margarida, em um arroubo de romantismo, em um de seus momentos de delírio, quando percebera que, para levá-la à cama, só com uma aliança no dedo.
Agora, três meses passados, as coisas começavam a ficar diferentes.
Segundo Camões, a posse é o funeral do amor e Luiz principiava a acreditar nessas palavras.
Não que tivesse deixado de amar Margarida. Isso, jamais. Ela era dedicada, delicada, apaixonada, um exemplo de esposa e de companheira. Fazia-o feliz todas as noite, deixava-o realizado todos os dias...
Em casa ele era o rei mas, ao mesmo tempo, um infeliz.
Durante mais três meses, consciente de que a boêmia tinha se tornado coisa do passado, que não poderia ser mais do que uma lembrança em sua vida, Luiz lutou consigo mesmo, dominou sua nostalgia, controlou sua melancolia e...
Venceu.
Esqueceu, ou melhor, arquivou em algum canto de sua mente e de seu coração as noitadas de seu tempo de solteiro e passou a se dedicar à casa, ao trabalho, à Margarida.
Até que um dia...
Ele lá estava, no final do expediente, a barriga indecentemente encostada no balcão de um bar da Praça da Sé, o rosto vermelho, redondo e sempre sorridente...
— Carneiro!
— Luiz!
— Vamos tomar um aí!
Era o perigo que se avizinhava...
Luiz olhou o relógio, viu que já passava de seis horas da tarde.
— Vamos, rapaz! — insistiu Carneiro — Tome um uísque! Como nos velhos tempos!
O apelo àquela época foi argumento definitivo.
Luiz não resistiu mais, tomou o primeiro uísque, logo acompanhado do segundo e do terceiro.
A partir desse momento, era outro homem.
Melhor dizendo, era o homem dos outros tempos, alegre, falador, cheio de vontade de descontar o tempo perdido.
Dali, da Praça da Sé, foram caminhando, trilhando a antiga rota, até a Brigadeiro Luiz Antônio, até o Bexiga e seus bares, suas mulheres, sua turma.
Luiz chegou de volta à sua casa, embriagado, segurando uma garrafa com um resto de JB e um problema terrível: como explicar o que acontecera para a sua Margarida?
Esta, os olhos vermelhos pelo choro, o coração aos pulos pelo desespero e a angústia de não saber onde é que estava o marido, esperava-o na porta.
— Querida, você não sabe o que me aconteceu! — disse ele, assim que entrou em casa.
E, antes que Margarida pudesse protestar, ele foi contando a história comprida e complicada de um casamento às pressas de um seu amigo, um velho amigo de infância que, finalmente, tinha tido a mesma sorte que ele, Luiz, e encontrara a outra metade da laranja.
— Você precisava ver, querida —finalizou Luiz — Ele estava tão feliz... Estava com a aparência de um anjo! Acho que estava sentindo o mesmo que eu, no dia em que casamos!
Margarida, ainda inexperiente e ingênua, com o ego devidamente massageado pelas espertas palavras de Luiz, engoliu a história.
Cuidou de sua bebedeira, fez-lhe café, deu-lhe o tradicional conselho:
— Não beba tanto assim, querido... Você não está mais acostumado...
Doce ilusão...
E trágica provocação.
Luiz ficou preocupado com a afirmação da mulher.
— Será que não estou mais acostumado, mesmo? — perguntou-se — Será que estou começando a ficar velho, será que chegou a hora de me aposentar?
Passou três dias com isso na cabeça e, no final do expediente de sexta-feira, resolveu tirar a prova.
Saiu do escritório e, sozinho, foi para a Bela Vista, para aquele barzinho onde tantas e tantas vezes batucara no copo, acompanhando a voz desafinada do Adoniran
Claro que encontrou toda a velha turma que o recebeu cantando/berrando a velha música Boemia...
Voltou para casa madrugada alta e, desta vez, a história que contou para Margarida, foi a de um amigo que, depressivo por ter perdido a mulher em um acidente de trânsito, estava querendo se suicidar.
Margarida, mais uma vez, aceitou a mentira como verdade, tratou do marido, recomendou-lhe que tomasse cuidado com a bebida, com o cigarro e...
Tudo voltou ao normal, à velha rotina de sempre.
De sempre?
Não bem exatamente para o Luiz. Ele recomeçou a frequentar os bares da Bela Vista, a reencontrar os amigos, o uísque e o samba.
Passou a chegar tarde em casa pelo menos três vezes por semana e as desculpas que encontrava eram as mais diversas e estapafúrdias: velórios, clientes na cadeia, execuções criminais, audiências com políticos e homens de negócios que avançavam noite a dentro...
Margarida, no início, aceitava tudo.
Porém, com o tempo, as coisas foram ficando mais difíceis, ela passou a desconfiar, a achar que não era possível o marido trabalhar tanto, lidar com gente tão importante quanto dizia e, no fim do mês, ao invés de mais dinheiro, o que sobrava era apenas uma quantidade maior de dívidas.
Luiz logo percebeu que a esposa estava encontrando dificuldades para engolir o que ele lhe dizia.
Começou a rebuscar mais as desculpas, a enfeitar mais as histórias, partindo do princípio que o absurdo era sempre melhor pois, pelo simples fato de ser absurdo, não admitia qualquer espécie de comprovação.
— Estou voltando de Buenos Aires — disse, certa vez — Tive que ir para lá de manhã, pois um cliente foi preso por estar carregando dois relógios de ouro.
Em uma outra ocasião, com um bafo de matar dinossauro, depois de dois dias e duas noites de ausência, ele contou que estivera em Manaus, também por causa de um cliente que o chamara para resolver uma delicada questão com o IBAMA.
— Ele estava criando jacarés em sua fazenda. Uma criação bem feita, dentro de todos os preceitos e recomendações científicas. Mesmo assim, o IBAMA tascou-lhe uma multa astronômica. Fui lá para quebrar o galho.
Duas semanas depois, após passar o sábado e o domingo enfurnado com duas mulheres em um sítio em Atibaia, ele contou para Margarida que fora a Miami para assessorar um amigo na compra de uma mansão à beira da praia.
— Ele pôs a casa à nossa disposição, querida. Acho que seria uma boa passarmos o Natal lá...
Margarida já nem sorria mais.
Impossibilitada que estava de comprovar ou de contestar os álibis que lhe trazia o marido, ela se limitava a continuar a cumprir o seu papel, continuava a ser uma esposa dedicada e exemplar, permitindo-se apenas o direito de resmungar alguma coisa quando, no final do mês, o dinheiro faltava.
— Não entendo — murmurava — Você trabalha tanto... E continua sem dinheiro, vive sempre com essa miserinha nos bolsos, a nossa conta bancária eternamente no vermelho...
— É a ingratidão das pessoas, querida — dizia Luiz — Não me dão o valor. Não sabem me remunerar de acordo com o meu trabalho!
Até que um dia...
A farra fora maior que das outras vezes.
Luiz estivera durante três dias com sua turma, em uma chácara perto de Campinas, cercado de uísque por todos os lados e com nada menos que três mulheres em sua cama.
Pode-se muito bem imaginar o estado em que voltou para casa.
Um estado que não permitia qualquer explicação, a camisa manchada de batom de várias cores, fios de cabelo ainda presos à roupa, marcas arroxeadas no pescoço e no peito que a camisa, rasgada por unhas afiadas, deixava à mostra.
Ele percebeu a situação em que se encontrava no exato instante em que Margarida abriu a porta de sua casa, dizendo:
— Muito bem, doutor Luiz... Vamos ver que história você vai inventar agora...!
Luiz olhou para a mulher, olhou para si mesmo e, balançando a cabeça, gemeu:
— Não, querida... Dê você uma desculpa... As minhas já se esgotaram todas!

domingo, 21 de dezembro de 2008

UM CASO COMPLICADO


Viúvo havia pouco tempo, ele morava numa casinha na subida que leva à Igreja.
Com pouco mais de sessenta anos, ainda era um homem sacudido e forte, não tinha medo de nenhuma espécie de serviço, enfrentava qualquer empreitada.
Não era rico, nem poderia ser, vivendo naquela cidade miserável, de gente mesquinha e pequena.
Bem ao contrário, lutava com dificuldades, era obrigado a muitos malabarismos para conseguir se manter com a parca aposentadoria que recebia do governo. Ainda enquanto a mulher vivia havia um pouco mais de folga, pois ela fazia doces para vender, costurava um pouco e, com isso, ajudava bastante no orçamento doméstico.
Agora que enviuvara, as coisas se tornaram bem mais difíceis.
Como a maioria das pessoas naquela cidade, depois de cinco horas da tarde, ele gostava de ficar sentado em sua varanda, cumprimentando os passantes e esperando algum amigo mais chegado que viesse tomar um café e bater dois dedos de papo.
Naquela tarde, uma tarde bonita e colorida, ele se surpreendeu ao ver encostar diante de seu portão, um automóvel.
Era um carro novo, bonito, lustroso. Coisa rara no município.
Um senhor de seus trinta e oito anos de idade, bem vestido, elegante e de modos bem educados, desceu do veículo e dirigiu-se para o portão.
Ele conhecia muito bem aquele homem, não era nenhuma novidade sua chegada, mas o estranho era a expressão carregada de seu rosto, habitualmente alegre e jovial.
Esperou que ele chegasse até a varanda, levantou-se, apertou sua mão e, mais uma vez, se preocupou.
O aperto de mão, sempre caloroso, firme, estava frio, distante...
Tão frio e distante quanto o seu olhar, quanto a sua maneira de agir, como se fizesse cerimônia, como se estivesse até encabulado, julgando-se indesejável naquela casa.
O que seria o absurdo dos absurdos...
O recém-chegado aceitou um café e, depois de tomá-lo, acendeu um cigarro com a mão trêmula.
— Alguma coisa não vai bem — comentou o velho — O que está havendo?
O outro não respondeu de imediato. Soprando a fumaça do cigarro para o alto, depois de alguns segundos de angustiante e opressivo silêncio, falou:
— Estou preocupado... Muito preocupado, na realidade.
O velho ergueu as sobrancelhas e fitou-o, encorajando-o mudamente a continuar.
O visitante serviu-se de mais café e disse:
— Você me conhece desde pequeno. Acho até que me viu nascer, não é mesmo?
— Você sabe que sim! — exclamou o velho — Por que está falando assim, perguntado uma coisa que é do conhecimento de todos?
Mais uma vez, o outro se calou. Parecia pensar muito, escolhendo cuidadosamente as palavras que iria utilizar.
Com expressão dura e um tom magoado na voz, finalmente ele falou:
— Pois é... O que está me preocupando é justamente algo que todo mundo parece saber e somente eu é que não sei...
O velho olhou para as pontas de seus sapatões. Depois de quase um minuto assim, ele se levantou, foi até a sala de jantar e, de dentro de um armarinho de vidro, antigo como o tempo, apanhou uma palha de milho para fazer um cigarro. Do bolso da calça, tirou um pedaço de fumo de rolo e começou a cortá-lo, meticulosamente, amontoando o tabaco no cavo da mão em concha.
— Acho que sei o que você está querendo saber — falou — E acho que tem todo o direito de ouvir a verdade...
O outro ficou lívido.
— Então é verdade... — murmurou.
Teria dito mais coisas se sua voz não lhe morresse na garganta.
O velho acendeu o cigarro de palha, soprou a chama que se formara na ponta acesa, apertou-a com o fundo da caixa de fósforos e, olhando fixamente para seu interlocutor, falou:
— Sim. É verdade.
O visitante apertou os olhos e, com muito sacrifício e esforço, conseguiu controlar suas emoções e sentimentos.
Finalmente, depois de um suspiro, falou:
— Quero saber tudo. Com os menores detalhes. Como você mesmo disse, é um direito que me assiste.
O velho balançou a cabeça afirmativamente, puxou uma baforada do cigarro e convidou:
— Vamos para a cozinha. Esse tipo de conversa é melhor à beira do fogo.
Entraram, sentaram-se junto ao fogão de lenha onde as chamas crepitavam molemente e uma chaleira antiga, sobre a chapa, fervia.
— Na realidade — disse o velho — não há muito que contar. De mais a mais, aconteceu há tanto tempo...
Antes que o outro protestasse, acrescentou:
— Mas não se preocupe. Você vai saber de tudo, pelo menos de tudo quanto eu puder me lembrar.
— Quero saber tudo — insistiu o outro — Não apenas o que você disser que lembra!
Os dois ficaram calados, olhando-se.
Havia certa agressividade na expressão do visitante, mas o velho não ligou.
Depois de alguns momentos, ele sorriu e disse:
— Não sei o que é que isso pode influenciar em sua vida, agora. Na minha, faz muita diferença, pode ter certeza. O fato de você saber, ter certeza afinal, de que é meu filho...
Voltou a acender o cigarro e completou:
— Isso me faz bem. Muito bem, mesmo.
— Mas... As circunstâncias...? — balbuciou o outro — Preciso saber como isso aconteceu!
Um pouco mais controlado e até um tanto quanto submisso, ele explicou:
— Me é muito difícil admitir que minha mãe tenha sido uma leviana... Compreenda!
— Sua mãe jamais foi uma leviana! — protestou o velho — Muito pelo contrário! E, da mesma maneira, eu jamais fui um gavião!
Ele olhou para o velho e surpreendeu-se ao perceber que, pela primeira vez, estava encarando-o como seu verdadeiro pai. De repente, sentiu que havia muitos pontos de semelhança, pontos que parecia até um absurdo jamais ter descoberto antes.
— Como pode afirmar isso? — perguntou — Se quando eu nasci minha mãe já era casada fazia dez anos! E não tenho notícia de que houvesse enviuvado ou se separado nessa ocasião!
O velho balançou a cabeça afirmativamente e falou:
— Casada, era... Isso, ninguém pode negar. Era casada na Igreja, no Cartório e tudo o mais.
Ergueu os ombros e acrescentou:
— Só que o casamento jamais passou disso.
Antes que o filho pudesse dizer alguma coisa, o velho prosseguiu:
— O homem com quem sua mãe se casou, logo após o casamento, adoeceu. Por isso, não tiveram filhos. Daí, após nove anos de casados, sua mãe achou que era preciso uma criança. Ela não queria deixar a fazenda para os irmãos dela e, muito menos para os do marido. Assim, um dia, ela me pediu para lhe dar um filho.
Fixando o olhar no homem que estava à sua frente, completou:
— Eu era um empregado... Apenas obedeci. Apenas satisfiz esse desejo dela.
Houve um silêncio pesado, denso... Tão denso que se tinha a impressão de poder cortá-lo com uma faca.
O visitante acendeu um cigarro, a mão já mais firme, parecia muito mais senhor de si após ter conseguido a confirmação que viera buscar.
— Você acha que o pai... que o marido dela... sabia?
— Só podia saber, ora essa! — exclamou o velho — Eles jamais tiveram uma relação! Jamais dormiram juntos! Só nos primeiros dias após o casamento!
O filho voltou a ficar pensativo, olhando para a brasa do cigarro.
Por fim, ele disse:
— Acho que não vou poder chamá-lo de pai... Em primeiro lugar, não me acostumaria... Em segundo lugar, teria de dar muitas explicações complicadas lá no serviço, na repartição... Seria penoso e difícil.
Levantou-se, sorriu, estendeu a mão para o velho e murmurou:
— Em todo caso, quero que saiba que sempre gostei muito de você... Sempre o tive como um grande companheiro e no fundo, estou feliz com essa notícia. Muito obrigado!
Já fazia mais de duas horas que ele tinha ido embora (deixara sobre a mesa da cozinha um gordo envelope de dinheiro dizendo que era para ajudar nas despesas da casa), e o velho continuava ali, sentado à beira do fogão de lenha, fumando e pensando.
Quase quarenta anos! Quanto tempo!
Ele trabalhava na fazenda Brejo Alegre. Era o pau-para-toda-obra, o capataz, o retireiro, o zelador, o comprador... Enfim, fazia de tudo, de tudo cuidava.
Fazia já doze anos que ali estava, chegara nada menos que três anos antes do jovem casal que comprara aquelas terras.
Sempre estranhara a boa disposição da mulher e a preguiça e marasmo do marido. Era um sujeito letárgico, nada fazia a não ser ficar estendido na rede, a dar ordens para todos.
Todos?
Não! Ele não conseguia se fazer obedecer pela mulher...
Moça desempenada e bonita, ela era o oposto do homem que tinha por companheiro: decidida, punha as mãos na terra, trabalhava sem medo e sem medir o tamanho do serviço que tinha pela frente. Dava gosto, ver aquela mulher!
Durante alguns anos, o relacionamento entre o casal e ele foi o que se poderia imaginar de mais comum e normal. Era um relacionamento exatamente como deveria ser entre patrões e empregado. Ele labutava no serviço pesado, ela fazia o restante e o marido...
Bem... Ele apenas olhava.
Como diz um velho ditado regional, “casa com cumeeira fraca não dá boa morada”, um dia, o pagamento dos empregados da fazenda, não saiu.
A falta de chuva, o gado com o pasto ruim, o leite muito quebrado... Uma porção de coisas influíram para que o dinheiro não fosse suficiente nem mesmo para pagar as despesas da sede.
O marido, em vez de pelo menos tentar se explicar, nada mais fez que se deitar na rede, agora com um litro de cachaça na cabeça e... dormir.
Foi ela quem veio lhe dizer, toda sem jeito:
— Olhe... Este mês não tiramos para o sustento... Não vamos ter como pagar os camaradas.
Ele ficou com dó daqueles olhos cheios d’água e qualquer coisa nos modos da moça, tocou fundo em seu coração.
Assim, foi absolutamente natural que ele dissesse:
— Não faz mal, dona... Nós vamos trabalhar dobrado e, no mês que vem, a gente tira a diferença.
— Muito obrigada! — disse ela — Você não vai se arrepender por estar me ajudando agora!
Ela saiu, apressada, dando a desculpa de que tinha de ver um doce que estava no fogo, encomenda de um bar lá da cidade.
Ele ficou ali, vendo-a se afastar, achando esquisito que ela tivesse dito “me ajudando” e não “nos ajudando”, como seria o mais normal.
Teve a explicação para essa atitude da moça, quando esta passou diante do marido que roncava na rede, bêbado.
— Tranqueira! — disse ela, com raiva — Não presta para nada!
Ele não pode deixar de sorrir. Na verdade, sua opinião a respeito daquele homem, era exatamente a mesma...
Resolvido a ajudar aquela mulher a levantar a fazenda, ele passou a trabalhar — como prometera — em dobro. Não tinha mais hora de descanso, não parava um só segundo durante o dia e rara era a noite em que ele ia deitar antes de uma hora da madrugada.
Como seria de se esperar, passou a se introduzir mais na casa e nos negócios do casal. Na realidade, nos negócios dela, pois o marido, inchado de tanta cachaça, ele não valia mesmo para mais nada. Se antes já era um traste, a partir do momento em que assumira a sua bebedeira, passara a ser muito pior do que um pau podre. Dizia-se, com razão, que se uma vaca deitasse na porta de sua casa e precisasse de um balde d’água para não morrer, com certeza, ele perderia a vaca.
Aquele homem não se levantaria da rede e não largaria a garrafa de cachaça por nada deste mundo.
E ela, a esposa, a correr de um lado para o outro, matando-se de trabalhar, fazendo doces, fazendo bordados, ajudando na horta, no chiqueiro, no galinheiro, trabalhando, trabalhando, trabalhando...
Porém, esse esforço todo não ficou sem recompensa: no final de um ano, as dívidas estavam pagas, a fazenda prosperava. O gado, gordo e bem tratado, produzia sem parar. As lavouras, bem cuidadas, bem planejadas, eram uma promessa de fartura, de boas safras.
Finalmente, graças a Deus, a penúria terminara.
Ele já gozava de bastante liberdade na casa, entrava pela porta da cozinha e só se anunciava depois de estar lá dentro. Por várias vezes, solteiro que era, tomara suas refeições com a dona da casa e mais de uma noite ficara até tarde conversando com ela, fazendo contas, prestando contas e arquitetando planos para as próximas plantações e para novos investimentos que, à medida que a fazenda melhorava, tornavam-se mais e mais urgentes.
Uma manhã, ao chegar à porta da cozinha, percebeu que ela estivera chorando. Hesitou, quis sair, discreto que era, mas a afeição que já sentia por aquela mulher era suficiente para o impedir.
Perguntou, sem jeito, rodando o chapéu entre as mãos:
— O que foi, dona? Porque essa tristeza toda?
Ela enxugou os olhos no avental e, procurando disfarçar, atiçou o fogo indagando, a voz ainda entrecortada pelos soluços:
— O senhor quer café? Vou passar um agora...
Serviu-o numa caneca de louça que, ele sabia muito bem, só ela é que usava. Ao lhe dar o café, as lágrimas voltaram a rolar por suas faces coradas pelo calor do fogo e pela emoção que a sacudia.
Ele pegou a caneca e, com a outra mão, trêmulo e sem jeito, puxou-a para seu peito dizendo:
— Chore não... Tudo está tão bem agora... O que é que está acontecendo que a deixou tão triste?
Ela se esquivou, arredia e arisca. Seu rosto ficou mais corado e, atrapalhada, encabulada, acabou se queimando com o café quente.
Ela soltou um pequeno grito e sacudiu a mão escaldada.
— Queimou-se? Queimou-se? — perguntou ele, aflito — Deixe ver, vamos passar gordura para não empolar!
Dócil, ela se deixou medicar e ele se demorou passando gordura fria sobre sua mão, por entre seus dedos...
Ainda que muito sem jeito, ela não fez a menor menção de fugir àquele contato.
Voltou aos seus afazeres e ele saiu, ia juntar uma ponta de gado que comprara para a fazenda e que precisava curar.
Ela passou o dia todo pensando nesse incidente.
Não conseguia esquecer o carinho que ele mostrara, a atenção e a preocupação que lhe dispensara...
— Tão diferente daquele traste...
Assustou-se. Que novidade era aquela?! O que estava acontecendo com ela?!
Não conseguiu abafar uma vibração nova, um entusiasmo diferente e estranho que sentia, que a fazia sorrir e suspirar, que a deixava pisando em nuvens, que a fez salgar duas vezes o arroz, queimar o feijão e esquecer de fritar os ovos para o jantar.
À noite, ao entrar no quarto para dormir, viu o marido, já havia muito tempo embriagado e roncando como um porco.
Sentiu raiva daquele homem, ódio daquele bêbado e vagabundo, absolutamente inútil...
— Porco miserável! Não serve nem mesmo para me dar um filho!
Foi nesse momento, ao dizer essa frase, que a idéia lhe surgiu na cabeça. Um filho! Ela precisava de um filho!
Não dormiu aquela noite.
Ficou o tempo todo rolando na cama, sem encontrar posição. A noite inteira, seu pensamento vinha para o mesmo ponto:
— Um filho! Preciso de um filho, mas que não seja igual a esse cachaceiro!
Mal se encontraram nos dias que se seguiram.
Ela sabia que ele andava ocupado com o gado, com as roças dos meeiros, mas não deixou de ter a impressão de que ele estava fugindo da sede, de que estava evitando se encontrar com ela.
No final da semana, ela mandou chamá-lo, pretextando querer saber da produção de leite.
Ele estranhou.
— Gozado! Ela nunca me perguntou nada antes! Será que está desconfiando de mim?
Entrou na casa, desta vez, acabrunhado e tímido.
Ela, sorridente, logo lhe serviu uma caneca de café, dizendo:
— Eu queria lhe pedir desculpas pelo outro dia... Não queria lhe dar trabalho, mas estava nervosa, não vi direito o que estava fazendo e, por isso, me queimei...
Aliviado, ele sorriu e respondeu:
— Ora, dona... Não foi nada! Não foi trabalho nenhum!
Ela tocou seu braço e falou:
— Pois é... Gostei muito de ver que o senhor tem carinho por mim... Eu bem que preciso! O senhor vê o marido que Deus me deu!
Estranhando a conversa, ele corou encabulado e não conseguiu mover um músculo sequer.
— Veja só — continuou ela — Estamos casados há nove anos e não tive filhos até hoje! E não é por que eu não queira! É ele que não consegue fazer nada...
Baixando os olhos, acrescentou:
— Sabe... Eu também sinto falta...
Uma luz se fez em sua cabeça. Percebeu, afinal o que ela estava querendo, descobriu a razão por ter sido chamado àquela hora.
Por um breve instante, ele desejou sumir, quis que o chão se abrisse sob seus pés e o tragasse para as profundezas do inferno...
Mas, era impossível...
Ela o segurava pelo braço, puxava-o para muito perto de si e dizia:
— Quero um filho, quero um herdeiro que possa ficar com tudo isto, que possa fazer toda esta terra prosperar! E quero ter esse filho com o senhor!
Ele sentiu suas pernas amolecerem, sua alma parecia querer fugir, o corpo querendo ficar...
Não conseguiu falar nada, não enxergou mais nada...
Veio dar por si no quarto de hóspedes, ela ainda deitada ao seu lado, nua, linda, o sorriso bonito das mulheres que estão satisfeitas...
— Já nem me lembrava mais... — murmurou ela.
Daí por diante, ele a fez recordar o amor muitas e muitas vezes...
Até que um dia, ela lhe disse:
— Estou grávida...
Quando nasceu o menino, forte, gorducho, esperto, o marido não teceu nenhum comentário.
Apenas pegou mais uma garrafa de pinga e bebeu...
É claro que não chegou a ver o primeiro aniversário da criança, morreu um mês antes, num tombo da rede em que estava bebendo fazia já três dias seguidos.
Ele ajudou a carregar o caixão do defunto e, no dia seguinte, dando uma desculpa qualquer, foi embora da fazenda.
Não suportaria ver crescer o menino sem poder dizer que era seu pai e, de toda forma, a fazenda já ia bem, já não mais precisava dele.
Agora, depois de tantos anos passados, também estava sozinho...
Olhou para a noite, pensou:
— Pois é... Agora, estamos sós... Ela e eu... Só que somos dois velhos. Nada mais que dois velhos.
Levantou-se e foi para o quarto, o passo firme, o corpo ereto.
Despindo-se para dormir, murmurou:
— Sim... Agora estamos velhos... Não adianta querer outra vez...