Ele era o que se poderia chamar de autêntico boêmio.
Não havia noite que não encontrasse meia dúzia de amigos e que não fosse para um bar qualquer tomar uns drinques, contar piadas e — por que não? — cantar um sambinha.
Dizia que era feliz assim, que não conseguiria jamais conceber um outro ritmo de vida e que, em resumo, não fora feito para a vida doméstica, para a pacata vida dentro de quatro paredes e de um coração.
Mas, toda araruta tem seu dia de mingau e com Luiz não poderia ser diferente.
Num final de semana, durante uma festa em casa de um de seus muitos amigos, ele a conheceu.
Chamava-se Margarida, era morena, tinha um sorriso encantador e...
Simplesmente o cativou.
Conquistou-o por completo, dominou-o, domou-o, compreendeu-o e, em menos de um mês, lá estavam eles diante do Juiz-de-Paz — com padres e freiras ele não queria histórias — casando-se, constituindo um lar.
Para a turminha de boêmios foi uma perda. Para os proprietários de muitos bares ali na região da Bela Vista, foi uma significativa diminuição na receita pois, seguramente, três quartos do salário de Luiz era sumariamente transformado em uísque e petiscos todos os meses.
E olhe que, como advogado, ele não ganhava pouco!
Mas, amigos que todos eram, por mais falta que dele sentissem, estavam felizes por vê-lo realizado, por vê-lo sorrir satisfeito, quando dizia:
— Agora estou sossegado. Sosseguei o pito, não quero mais saber de farras. Estou contente com o que tenho lá em casa.
Contudo, Vox populi, vox Dei e nada é mais verdadeiro do que aquilo que o povo diz.
E o povo costuma afirmar que pau que nasce torto, não tem jeito, morre torto.
Luiz começou a ficar melancólico.
Era feliz, está certo, sentia-se muito bem em casa, em companhia de sua Margarida mas, não podia escutar uma música de Sílvio Caldas ou de Agostinho dos Santos que logo lhe vinha uma estranha e terrível vontade de chorar, um desejo agudo de se isolar do mundo, de ficar sozinho, recolhido apenas às suas lembranças, às recordações daquela época em que, madrugada alta, ele e os amigos ficavam cantando pelos bares, comendo coxinhas de galinha de aspecto e sabor duvidosos e tomando uísque comprovadamente falsificado.
Não demorou para perceber que o que lhe estava faltando era a boêmia, era o convívio com os amigos, o uísque vagabundo bebido em companhia de vagabundas e ao som desafinado de vozes já bem embotadas pelo excesso de nicotina e álcool.
Mas ele não poderia jamais dizer isso para a Margarida.
Ela não compreenderia e isso ele tinha certeza.
Mesmo porque, ainda na época — muito curta, é verdade — de namoro, ela deixara claro que não era do feitio de admitir que ele se dividisse. Ou ela, ou a boêmia, ele que escolhesse.
E Luiz escolhera Margarida, em um arroubo de romantismo, em um de seus momentos de delírio, quando percebera que, para levá-la à cama, só com uma aliança no dedo.
Agora, três meses passados, as coisas começavam a ficar diferentes.
Segundo Camões, a posse é o funeral do amor e Luiz principiava a acreditar nessas palavras.
Não que tivesse deixado de amar Margarida. Isso, jamais. Ela era dedicada, delicada, apaixonada, um exemplo de esposa e de companheira. Fazia-o feliz todas as noite, deixava-o realizado todos os dias...
Em casa ele era o rei mas, ao mesmo tempo, um infeliz.
Durante mais três meses, consciente de que a boêmia tinha se tornado coisa do passado, que não poderia ser mais do que uma lembrança em sua vida, Luiz lutou consigo mesmo, dominou sua nostalgia, controlou sua melancolia e...
Venceu.
Esqueceu, ou melhor, arquivou em algum canto de sua mente e de seu coração as noitadas de seu tempo de solteiro e passou a se dedicar à casa, ao trabalho, à Margarida.
Até que um dia...
Ele lá estava, no final do expediente, a barriga indecentemente encostada no balcão de um bar da Praça da Sé, o rosto vermelho, redondo e sempre sorridente...
— Carneiro!
— Luiz!
— Vamos tomar um aí!
Era o perigo que se avizinhava...
Luiz olhou o relógio, viu que já passava de seis horas da tarde.
— Vamos, rapaz! — insistiu Carneiro — Tome um uísque! Como nos velhos tempos!
O apelo àquela época foi argumento definitivo.
Luiz não resistiu mais, tomou o primeiro uísque, logo acompanhado do segundo e do terceiro.
A partir desse momento, era outro homem.
Melhor dizendo, era o homem dos outros tempos, alegre, falador, cheio de vontade de descontar o tempo perdido.
Dali, da Praça da Sé, foram caminhando, trilhando a antiga rota, até a Brigadeiro Luiz Antônio, até o Bexiga e seus bares, suas mulheres, sua turma.
Luiz chegou de volta à sua casa, embriagado, segurando uma garrafa com um resto de JB e um problema terrível: como explicar o que acontecera para a sua Margarida?
Esta, os olhos vermelhos pelo choro, o coração aos pulos pelo desespero e a angústia de não saber onde é que estava o marido, esperava-o na porta.
— Querida, você não sabe o que me aconteceu! — disse ele, assim que entrou em casa.
E, antes que Margarida pudesse protestar, ele foi contando a história comprida e complicada de um casamento às pressas de um seu amigo, um velho amigo de infância que, finalmente, tinha tido a mesma sorte que ele, Luiz, e encontrara a outra metade da laranja.
— Você precisava ver, querida —finalizou Luiz — Ele estava tão feliz... Estava com a aparência de um anjo! Acho que estava sentindo o mesmo que eu, no dia em que casamos!
Margarida, ainda inexperiente e ingênua, com o ego devidamente massageado pelas espertas palavras de Luiz, engoliu a história.
Cuidou de sua bebedeira, fez-lhe café, deu-lhe o tradicional conselho:
— Não beba tanto assim, querido... Você não está mais acostumado...
Doce ilusão...
E trágica provocação.
Luiz ficou preocupado com a afirmação da mulher.
— Será que não estou mais acostumado, mesmo? — perguntou-se — Será que estou começando a ficar velho, será que chegou a hora de me aposentar?
Passou três dias com isso na cabeça e, no final do expediente de sexta-feira, resolveu tirar a prova.
Saiu do escritório e, sozinho, foi para a Bela Vista, para aquele barzinho onde tantas e tantas vezes batucara no copo, acompanhando a voz desafinada do Adoniran
Claro que encontrou toda a velha turma que o recebeu cantando/berrando a velha música Boemia...
Voltou para casa madrugada alta e, desta vez, a história que contou para Margarida, foi a de um amigo que, depressivo por ter perdido a mulher em um acidente de trânsito, estava querendo se suicidar.
Margarida, mais uma vez, aceitou a mentira como verdade, tratou do marido, recomendou-lhe que tomasse cuidado com a bebida, com o cigarro e...
Tudo voltou ao normal, à velha rotina de sempre.
De sempre?
Não bem exatamente para o Luiz. Ele recomeçou a frequentar os bares da Bela Vista, a reencontrar os amigos, o uísque e o samba.
Passou a chegar tarde em casa pelo menos três vezes por semana e as desculpas que encontrava eram as mais diversas e estapafúrdias: velórios, clientes na cadeia, execuções criminais, audiências com políticos e homens de negócios que avançavam noite a dentro...
Margarida, no início, aceitava tudo.
Porém, com o tempo, as coisas foram ficando mais difíceis, ela passou a desconfiar, a achar que não era possível o marido trabalhar tanto, lidar com gente tão importante quanto dizia e, no fim do mês, ao invés de mais dinheiro, o que sobrava era apenas uma quantidade maior de dívidas.
Luiz logo percebeu que a esposa estava encontrando dificuldades para engolir o que ele lhe dizia.
Começou a rebuscar mais as desculpas, a enfeitar mais as histórias, partindo do princípio que o absurdo era sempre melhor pois, pelo simples fato de ser absurdo, não admitia qualquer espécie de comprovação.
— Estou voltando de Buenos Aires — disse, certa vez — Tive que ir para lá de manhã, pois um cliente foi preso por estar carregando dois relógios de ouro.
Em uma outra ocasião, com um bafo de matar dinossauro, depois de dois dias e duas noites de ausência, ele contou que estivera em Manaus, também por causa de um cliente que o chamara para resolver uma delicada questão com o IBAMA.
— Ele estava criando jacarés em sua fazenda. Uma criação bem feita, dentro de todos os preceitos e recomendações científicas. Mesmo assim, o IBAMA tascou-lhe uma multa astronômica. Fui lá para quebrar o galho.
Duas semanas depois, após passar o sábado e o domingo enfurnado com duas mulheres em um sítio em Atibaia, ele contou para Margarida que fora a Miami para assessorar um amigo na compra de uma mansão à beira da praia.
— Ele pôs a casa à nossa disposição, querida. Acho que seria uma boa passarmos o Natal lá...
Margarida já nem sorria mais.
Impossibilitada que estava de comprovar ou de contestar os álibis que lhe trazia o marido, ela se limitava a continuar a cumprir o seu papel, continuava a ser uma esposa dedicada e exemplar, permitindo-se apenas o direito de resmungar alguma coisa quando, no final do mês, o dinheiro faltava.
— Não entendo — murmurava — Você trabalha tanto... E continua sem dinheiro, vive sempre com essa miserinha nos bolsos, a nossa conta bancária eternamente no vermelho...
— É a ingratidão das pessoas, querida — dizia Luiz — Não me dão o valor. Não sabem me remunerar de acordo com o meu trabalho!
Até que um dia...
A farra fora maior que das outras vezes.
Luiz estivera durante três dias com sua turma, em uma chácara perto de Campinas, cercado de uísque por todos os lados e com nada menos que três mulheres em sua cama.
Pode-se muito bem imaginar o estado em que voltou para casa.
Um estado que não permitia qualquer explicação, a camisa manchada de batom de várias cores, fios de cabelo ainda presos à roupa, marcas arroxeadas no pescoço e no peito que a camisa, rasgada por unhas afiadas, deixava à mostra.
Ele percebeu a situação em que se encontrava no exato instante em que Margarida abriu a porta de sua casa, dizendo:
— Muito bem, doutor Luiz... Vamos ver que história você vai inventar agora...!
Luiz olhou para a mulher, olhou para si mesmo e, balançando a cabeça, gemeu:
— Não, querida... Dê você uma desculpa... As minhas já se esgotaram todas!
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