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sábado, 3 de janeiro de 2009

RUGAS NO ROSTO


Ela não conseguiu esconder a surpresa e a satisfação por tornar a vê-lo.
Ainda mais naquele hotel de Campo Grande, uma cidade para ela totalmente desconhecida, onde não conhecia ninguém e portanto, sem qualquer perspectiva de distração mais interessante do que a TV, logo mais, quando subisse para seu apartamento.
Pareceu-lhe, é verdade, que ele demorava um pouco a reconhecê-la, chegou a sentir um aperto no estômago.
— Será que mudei tanto assim?
Foi com alívio (e por que não dizer também, com grande felicidade?) que o viu sorrir e, enquanto pedia licença aos companheiros de mesa, levantou-se para vir cumprimentá-la.
— Marlene! — exclamou, estendendo a mão — Que coisa boa encontrar você por aqui!
Ficou em sua mesa por cerca de cinco minutos, pediu notícias, falou como sempre, as suas banalidades. Depois, desculpou-se muito, explicou que estava para fechar um grande negócio com aqueles senhores e por isso, não podia deixá-los sozinhos.
— Você há de compreender, Marlene... Eles podem se ofender. E é uma transação bem grande, muito importante para mim. Mais tarde ligo para você e, ainda hoje, vamos nos divertir, lembrar os velhos tempos.
Ali mesmo, no guardanapo, anotou o número do apartamento — 72 — em que ela se encontrava e, mais uma vez prometendo ligar, afastou-se.
Marlene terminou seu jantar e, ao se levantar para sair do restaurante, viu com o canto dos olhos que ele a estava observando. Fez um ligeiro sinal de despedida e deixou o restaurante.
Fazia dez ou doze anos que o encontrara pela última vez e, lembrava-se bem, esse encontro significara muito para ela.
Fora diferente de todos os outros apesar de, em sua essência mais primitiva, ter sido absolutamente idêntico a qualquer dos anteriores.
Deitou-se na cama apenas com as roupas íntimas (fazia tanto calor que o ar condicionado não resolvia nada), acendeu um cigarro e ali ficou, olhando para o teto, pensativa.
— É mesmo... Que coisa... Porque será que todas as vezes que o encontro, tudo é tão igual? E, o que é pior... Porque será que fico sempre tão ansiosa por um novo encontro?
Levantou-se, serviu-se de uma dose de uísque no Frigobar e, enquanto balançava os cubos de gelo dentro do copo, seus pensamentos transportaram-na até o dia em que o conhecera.

.x.x.x.

Eram ainda estudantes e tinham ido a uma festa.
Acharam-se mutuamente interessantes tanto quanto ambos acharam a festa sem graça e, embalados pelo álcool, foram fazer a ronda das boates.
Na verdade, por mais que se esforçasse, ela lembrava de muito pouca coisa daquela noite.
Só uma ou outra frase trocada entre copos de uísque, uma ou outra cena, já embaçada pelo tempo e prejudicada pela quantidade de bebida então ingerida.
— Você fala pelos cotovelos!
— Mas... Diga-me: há outra coisa para fazer?
Logo descobriram que havia.
O som alto da boate obrigava-os a se falar muito de perto, forçava uma aproximação de rostos, de bocas...
Ela pode sentir-lhe o hálito, havia um cheiro adocicado provocado pelo tabaco do cachimbo, deu-lhe vontade de saber se o gosto de sua boca também era doce...
E era.
Assim como suas mãos eram doces e macias, percorrendo suas coxas, insinuando-se por sob a saia, acariciando-a em suas partes mais sensíveis, já muito úmidas e latejantes.
Sentiu que ele afastava a beirada da calcinha e percebeu, já quase num delírio, seu dedo alisando-lhe os pelos...
Não foi preciso muito mais para que fossem para a cama num daqueles hotéis de alta-rotatividade da Bela Vista, e foi preciso menos ainda para que esquecessem que tinham ido.
Fora uma aventura, simplesmente uma aventura.
Alguns meses depois, tornaram a se encontrar em um café da cidade, naquela hora perigosa de final de expediente.
Carona oferecida, carona aceita que, evidentemente, terminou em mais um hotel de péssima fama, após a escala rotineira em um restaurante da moda e em uma casa de jazz.
Ponto em comum: ambos adoravam jazz e blues.
E, outro ponto em comum, ambos tinham uma sede intensa de carinho, ambos sentiam a necessidade imperiosa de se explorar de todas as maneiras, de descobrir novas e cada vez mais deliciosas sensações...
Juntos, um com o outro, aprenderam que o sexo não é feito apenas daquela maneira tradicional e muito menos às pressas, como se estivessem o tempo todo com medo de serem surpreendidos.
Surpreendidos por quem, afinal de contas?
Quem poderia ir procurá-los naquele lugar? Quem poderia ter a curiosidade ou mesmo a necessidade de ir descobri-los daquele jeito, cabeças entre pernas, fluidos materiais e espirituais misturados no auge de um prazer que até bem pouco tempo atrás apenas imaginavam, julgando-o ainda pecaminoso e proibido?
Depois dessa segunda vez, ela passou um bom tempo sem o ver, jurando que o esqueceria, que não o amava e que não mais se deixaria utilizar por ele, como se fosse um simples objeto de consumo. Porém, guardou e carregava sempre consigo, uma caixinha de fósforos, lembrança daquela noite, da casa de jazz onde ele, acariciando seus seios por sob o casaco que lhe emprestara talvez justamente com esse propósito, sugerira uma noite inesquecível, plantara-lhe a idéia daqueles momentos de sonho e de prazeres tão intensos.
Não se pode dizer que ela não tenha se esforçado: outros homens vieram, passaram por sua vida, amores efêmeros, fugazes, falsos, que ainda mais depressa se desmanchavam quando ela se lembrava dele.
Era tão diferente...
Tão carinhoso!
Ela, profissional competente, tornara-se procuradora de uma grande empresa e seu trabalho a absorvia, fazia-a viajar com muita frequência.
Recebeu uma incumbência que a levou ao Rio de Janeiro.
Instalou-se no Hotel Olinda e, à noite, viu-o no bar.
Tentou evitá-lo, procurou disfarçar, fingiu não o reconhecer mas, em vão: acabaram por se cruzar, beijaram-se.
Claro...
Foi apenas aquele beijo casto de duas pessoas amigas que se reencontram, em ambas as faces, distâncias física e áurica mantidas...
Mas, talvez fosse exatamente uma questão de auras...
Ao convite para um drinque, ela não se esquivou.
Como também não se esquivou quando ele começou, muito mansamente, muito docemente, a lhe acariciar as costas, depois as coxas...
Um breve e fugidio toque em seus seios...
A sugestão de dividirem a mesma cama mais uma vez, foi consequência óbvia , absolutamente inevitável e...
Irrecusável.
Amaram-se novamente.
Ele se confessou mais maduro, mais consciente, menos estouvado.
Ela constatou que ele continuava a ser o melhor de todos os amantes, o único que conseguia fazê-la chegar realmente ao ponto culminante da escalada em busca do prazer máximo.
Mas...
Faltava algo.
Ela percebia, sentia, sabia...
Estava faltando alguma coisa.
Segurança? Uma promessa, que fosse, de estabilidade?
Amor?
Ela jamais saberia responder.
Ele, tampouco.
No dia seguinte, fazendo das tripas coração, conversou seriamente com ele.
Despediram-se, convencidos ambos de que aquela tinha sido a última vez.
Passou-se um ano, longo, lento, marcado por uma cansativa e infrutífera busca da felicidade.
Ela definhava a olhos vistos e revoltava-se cada vez que se conscientizava do motivo.
— Afinal, tenho plena convicção de que não o amo!
Quis o Destino que ela precisasse voltar ao Rio de Janeiro.
Já para não despertar inúteis e dolorosas recordações, escolheu outro hotel, não mais em Copacabana.
— O que preciso fazer é no Centro, não há por quê me hospedar em Copacabana, nem mesmo há qualquer razão de passar por lá.
À noite, acompanhando um casal amigo, foi a um restaurante.
Estava feliz, sem preocupações, seus negócios estavam caminhando bem, podia e queria se distrair um pouco.
Mas, quis o Destino, esse brincalhão, que ela o visse, sozinho em uma mesa, bem no fundo desse restaurante.
Por um momento, pensou que também tinha sido vista, quando ele ergueu os olhos do jornal que estava lendo.
Mas não...
Ele apenas estava querendo chamar o garçom.
Ela teve vontade de ir embora, daria uma desculpa qualquer aos amigos que a acompanhavam, pegaria um táxi e correria a se refugiar em seu quarto de hotel.
Mas, achou que seria muito desagradável, muito mal-educado e...
Uma imensa covardia de sua parte.
Ficou e, quando terminaram o jantar, ele ainda estava lá, absorto em sua leitura, tomando o café em pequenos goles e fumado um cigarro com toda a calma do mundo.
Ela voltou para o hotel.
Ainda pensava nele, na estranha e terrível coincidência que fazia com que se encontrassem em todos os lugares.
— Até parece coisa feita!
Sentia-se satisfeita por ter conseguido vencer a tentação de correr ao seu encontro, de se atirar em seus braços, de dizer que estava morrendo de saudades.
— ... a boca molhada e ainda marcada pelo beijo teu...
Suspirou.
Na verdade, uma pena...
Estava tirando a pintura do rosto quando o telefone tocou e, antes mesmo de atendê-lo, já sabia que era ele.
Recebeu-o em seu quarto com uma indescritível felicidade e, ao mesmo tempo, com uma incomensurável raiva de si mesma.
— Como você me achou?
— Foi fácil segui-la.
Não se permitiram mais perguntas.
O tempo parecia ser curto demais para tudo quanto queriam fazer, para deixarem correr sem freios e sem limites todo o desejo que sentiam, para descarregar a volúpia que os invadia e que se manifestava nas mais loucas formas de materializar seus impulsos.
Parecia não haver mais o que tentar de novidades, parecia terem esgotado por completo a imaginação lúdica e lúbrica...
E, no entanto, como fruto de um desejo sem qualquer conceito de finitude, novas posições surgiam, novos prazeres, novas sensações...
Ficaram juntos durante toda a semana, amaram-se apaixonadamente e juraram-se amor eterno, garantiram-se que jamais se separariam novamente, que a partir daquele instante, haveriam de dividir a vida, seus prazeres, suas delícias.
Até que...
— Preciso ir à Alemanha neste sábado.
— Quando é que você volta, querido?
Ela o acompanhou ao aeroporto, ficou lá chorando como esposa-de-soldado-que-vai-à-guerra enquanto o avião subia e sumia de vista.
Desde então, todos esses anos, sem nenhuma notícia.

.x.x.x.

Levantou-se, foi apanhar mais um uísque.
— Pelo menos, ele terá de me dar uma satisfação.
Ela sofrera muito quando, um mês após sua partida para a Alemanha, começara a contar os dias, as semanas, depois os meses, sem qualquer manifestação por parte dele, do homem que ela — agora sabia — amava.
Seis meses foram precisos para se convencer de que tinha sido preterida.
E, na verdade, jamais se recuperara de todo, da mesma maneira e na mesma medida, que jamais deixara de ter uma certa esperança.
— Se ele não me quisesse mais, não teria vindo até minha mesa, esta noite.
Sorriu, a velha chama voltando a se acender em sua alma.
— Talvez ele tenha voltado da Alemanha e precisado viajar outra vez... Pode ser que tenha passado por São Paulo justamente quando eu também estive no exterior...
Com carinho, procurava encontrar uma desculpa para seu homem, tentava amenizar o penar de todos aqueles anos.
— Mas... Bem que ele poderia ter escrito uma carta... Um postal, pelo menos!
Encheu mais uma vez o copo, sorriu.
— É bem verdade que eu também não escrevi... E sabia muito bem como encontrá-lo!
Já começando a sentir sono, teve um último pensamento antes de se deixar adormecer:
— Será que ainda há tempo para reparar nossos erros? Se você me der uma chance, amor, hei de fazer o máximo para torná-lo o mais feliz de todos os homens!
Acordou no fim da manhã, com o sol matogrossense invadindo o seu quarto, a boca seca, a cabeça doendo.
— Ele não ligou...
Já terminava o almoço quando ele chegou.
Sorrindo, aproximou-se de sua mesa mas, não sentou.
— Desculpe por ontem à noite, Marlene... Mas é que só consegui me liberar muito tarde. Imaginei que já estivesse dormindo.
À insinuação que ela fez para que jantassem juntos nessa noite, sorriu, consternado.
— Sinto muito, mas não posso. Hoje é impossível. Imagine que dentro de meia hora, preciso me encontrar com o presidente da empresa que estamos encampando. Fecho o negócio justamente hoje à noite.
Separaram-se pouco depois e ela ficou por ali, à beira da piscina, sem saber exatamente o que estava fazendo ainda em Campo Grande, uma vez que, por causa de seus negócios, já poderia muito bem ter ido embora.
Sentia-se mal, sabia que alguma coisa estava errada, que algo não se encaixava.
Não queria subir para o quarto onde, romanticamente, havia sonhado estar com ele. Não suportaria a solidão, o ambiente impessoal e frio daquele apartamento de hotel.
Viu-o atravessar o hall, elegante, bem vestido, a camisa folgada e muito colorida, emprestando-lhe um certo ar de turista americano.
— Não é possível que ele vá a uma importante reunião de negócios vestido dessa maneira!
Escutou, sem querer acreditar em seus ouvidos, quando o recepcionista lhe disse:
— Doutor, sua noiva já o está esperando...
Com autêntico desespero, ela o viu tomar pelo braço aquela bela mulher de vinte e poucos anos que chegara havia dez minutos e que estava sentada em uma das poltronas do saguão. Ela notara muito bem essa moça — chegara a invejar sua beleza, a pele lisa de seu rosto, as formas perfeitas de seu corpo e a superioridade consciente com que olhava o mundo.
Superioridade de quem sabe que tem o tempo todo pela frente...
Ele a tomou pelo braço, sorriu enternecido, beijando-a como ela, Marlene, esperaria ter sido beijada.
Sentindo uma dor surda na cabeça e um punhal a lhe atravessar o coração, subiu para o quarto.
Não conseguiu evitar as lágrimas e não conseguiu deixar de se olhar no espelho, por mais que tentasse evitar a visão de sua imagem refletida no vidro frio e cruel...
Não queria ser obrigada a reconhecer a verdade.
Estava fora do páreo e sabia-o muito bem.
Viu seu rosto, as lágrimas rolando pelas faces pintadas, os olhos com as bolsas já bem nítidas, a tintura que escondia os fios de cabelo branco.
Com dedos trêmulos, palpou suas faces, tentou inutilmente esticar a pele que já se enrugava ao redor dos olhos e nos cantos da boca.
— Estou uma velha! Sou uma velha!
Durante o jantar, tagarelando com a bela moça que estava ao seu lado, ele viu embarcarem em uma ambulância, um corpo amortalhado.
Chamou o garçom, pediu informações.
— Foi aquela senhora do apartamento 72. Tomou uma overdose de sedativos.
Ele deu de ombros.
Voltou a abraçar a moça, beijou-a mais uma vez.
Em sua mente, alguma coisa vagamente lhe dizia que aquele número de apartamento lhe era familiar.
Apenas vagamente...
Sem qualquer importância maior

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