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sábado, 17 de janeiro de 2009

MACIEL


A recepcionista entrou na sala do chefe do Pronto Socorro e disse:
— Está aí uma senhora que quer falar com o senhor...
É difícil, num hospital conveniado com o INAMPS, que alguém queira falar com o chefe do Pronto Socorro qualquer assunto que não seja uma reclamação.
No entanto, a própria maneira pela qual a tal senhora fora anunciada, indicava que não era esse o caso.
Normalmente, se ela estivesse trazendo uma queixa, a recepcionista logo falaria:
— Tem uma mulher aí querendo falar com o senhor.
É interessante notar que as pessoas do sexo feminino podem adquirir qualificações como “moça”, “menina”, “mulher”, “senhora”, “velha” e outras mais, às vezes até impublicáveis. O emprego dessas qualificações vai depender muito da própria pessoa em si e do nível de respeito que ela é capaz de incutir nas demais.
No caso em questão, deveria haver um bocado de respeito, pois a funcionária do hospital, via de regra mais do que desbocada e muitas vezes até mesmo inconvenientemente debochada, usara o termo “senhora”... O mais alto e mais cerimonioso de todos.
O doutor mandou que se fizesse entrar a tal senhora.
Com um sorriso simpático, ela disse:
— O caso, doutor, é meu irmão. Ninguém mais o agüenta, não dá mais para suportar o seu comportamento.
O médico, já deixando de lado a boa vontade inicial, ia explicar que ali era um hospital geral que, embora mantivesse convênio com o INAMPS, não tinha como atender casos de “comportamento” de ninguém. Ela que fosse procurar um hospital psiquiátrico ou que arranjasse um pouco mais de paciência e de caridade para tolerar o próprio irmão.
Porém, ela não o deixou falar.
Era uma senhora distinta, de seus cinqüenta anos de idade, bonitona e bem vestida, mostrando claramente que tinha posses, que não era “uma qualquer”.
— Já sei o que vai me dizer, doutor — falou ela — Mas também sei que o senhor pode muito bem fazer o que eu quero e o que eu preciso. Mesmo por que já ouvi dizer que o senhor é muito bom e não costuma negar ajuda a alguém necessitado.
— Não vejo como a senhora possa ser necessitada... — falou o médico, já com outro espírito, pois a senhora, sabidamente, tocara em sua vaidade pessoal.
— Não é apenas materialmente que alguém é necessitado, doutor — disse ela — Há outras necessidades que, por vezes, são ainda piores do que a falta de dinheiro...
Tomando fôlego, a senhora continuou:
— Garanto ao senhor que o Maciel não vai lhe dar trabalho. Ele é bonzinho, coitado. Está há uma semana sem comer e o senhor sabe... Ele está muito fraco.
Fez uma pausa para aceitar o cigarro que o médico lhe ofereceu (ele também tinha seus métodos para interromper uma conversa), enquanto perguntava:
— Mas... O que tem seu irmão, dona... dona...
— Margarida, doutor... E, por favor, esqueça esse “dona”. Afinal, não sou tão velha assim!
Catando com a ponta da unha bem tratada uma hipotética fagulha de qualquer coisa sobre o tampo da mesa do médico, ela prosseguiu:
— Meu irmão, o Maciel, não tem nenhum problema, coitado! Só tem um vício... Ele bebe um pouco demais.
— Pronto! — pensou consigo, o médico— Ela quer internar um alcoólatra que, provavelmente é do tipo violento para ela estar se referindo a um “comportamento insuportável”...
Começou a explicar para dona Margarida que era impossível, que o INAMPS jamais aceitaria uma internação desse tipo, que o tratamento de alcoolismo crônico era feito em hospitais especializados, que não havia a menor possibilidade de o tal Maciel ficar internado.
A boa, elegante e simpática senhora, ouviu tudo calada, com uma sombra de pesar no rosto bonito. Quando o médico acabou de argumentar, ela disse, apenas:
— Está certo, doutor... O senhor, realmente está com a razão. Infelizmente, o meu pobre irmão terá de ir outra vez para um instituto de psiquiatria. Coitado!
E, voltando a sorrir, cheia de esperanças, pediu:
— Mas o senhor poderia examiná-lo, não poderia? Ele está tão fraquinho... E tenho certeza que o senhor será capaz de reerguê-lo com uma receita... Tenho escutado tantas coisas boas a seu respeito! Sei que é um médico tão competente...!
Mais uma vez bombardeado em sua vaidade, o médico não conseguiu recusar.
Sim, era mais do que evidente que ele iria ver o Maciel, iria ver se poderia fazer alguma coisa por ele, mas — garantia — de modo algum, poderia interná-lo.
Acompanhou dona Margarida até o ambulatório em que estava seu irmão e viu-o.
Parecia ter mais de sessenta anos, alquebrado, trôpego, trêmulo, cabisbaixo. O aspecto do homem era tão ruim que, para o médico, ele deveria estar numa cadeira de rodas e não ali, sentado num dos bancos da sala de espera, como qualquer outro. Mandou uma enfermeira trazer a cadeira de rodas e ficou surpreso quando ouviu Maciel recusá-la e dizer, com uma voz surpreendentemente firme para um corpo tão carcomido e frágil:
— Nada disso! Não quero que me vejam como se eu fosse um aleijado!
Feita a vontade do paciente, este foi conduzido para um dos consultórios, apoiando-se como podia no braço de sua irmã.
Logo às primeiras perguntas da anamnese e às primeiras manobras do exame físico, já o médico estava convencido de que Maciel precisava mesmo ser internado. Tornava-se urgente um tratamento clínico antes de se pensar numa internação psiquiátrica. Afinal de contas, casa de repouso, manicômio ou hospício, não são lugares para se tratar pneumonias e era isso, justamente isso que Maciel apresentava.
Feita a internação, Maciel foi encaminhado para o leito 16, sob a responsabilidade exclusiva dele, do chefe do Pronto Socorro.
Nos dias que se seguiram, Maciel piorou muito. A febre não abaixava e seu fígado, já completamente falido, não podia metabolizar as medicações tornando o seu tratamento um verdadeiro problema de terapêutica.
Mas o médico não desistiu. Com todo o carinho e dedicação, procurou aliviar o sofrimento do pobre homem e, com isso, começou a surgir, entre os dois, um intenso sentimento de amizade, o relacionamento se aprofundando dia após dia.
É mais do que sabido que a maioria dos alcoólatras, quando em fase de sobriedade, são melancólicos e tristes, mas ao mesmo tempo, simpáticos e cativantes.
Maciel não era exceção a essa regra. Além do mais, ele possuía um espírito afiado e tinha a índole da liderança.
Quando, finalmente o carinho do médico, sua competência e a eficácia dos remédios começaram a fazer efeito, Maciel melhorou.
Mais disposto, não lhe foi difícil dominar a enfermaria.
Era o primeiro a ir ao banheiro, era o primeiro a ser servido, era o que se dirigia aos médicos e enfermeiros para qualquer reclamação, era quem dizia — pasmem! — quais dos outros podiam ou não receber visitas.
Inacreditavelmente, quando chamava a enfermeira (tinha estabelecido um código particular para tocar a campainha), era imediatamente atendido.
Fez com que o mundo, no andar de sua enfermaria, gravitasse em torno do leito 16.
O seu leito.
— Doutor, o senhor pode me dar cinco minutos de seu tempo?
O médico, que já sabia muito bem a duração desses tais cinco minutos, dizia, com um sorriso:
— Espere aí, Maciel... Vou acabar de passar a visita e venho conversar com você.
E ele sempre tinha uma história para contar.
Maciel tinha sido um contabilista. Aos vinte e cinco anos (estava com cinqüenta e cinco), tinha um bom emprego numa firma de óleos vegetais e podia se dar o luxo de sonhar com o futuro.
Tinha três manias: os amigos, o futebol e a namorada. Mourejava no escritório de segunda a sexta-feira, mas no final do expediente, não dispensava a cerveja tomada com os amigos. Só às quartas-feiras é que ele não ia ao bar: era o dia do namoro. Aos sábados, ia com a Rosana a um cinema e, todos os domingos, ia ao jogo. Rara era a vez que fugia a essa rotina e sempre se orgulhava de dizer que era um homem de vida regrada e regular. Ganhava relativamente bem e, uma bela noite de quarta-feira, pediu Rosana em casamento. Falou com os pais da moça e, radiante, marcou a data da cerimônia.
Desse dia em diante, Maciel direcionou todas as suas baterias, drenou toda a energia possível para o famoso dia 12 de setembro, o dia em que Rosana subiria ao altar para se casar com ele. Comprou um carro — usado, é verdade, mas nem por causa disso deixava de ser um carro — mudou-se da pensão em que vivia para uma casinha em Osasco que, diligentemente, ele ia ajeitando aos sábados e domingos, deixando de lado o futebol e o cinema.
Também deixou de ter tempo para a cervejinha com os amigos, esse luxo parecia-lhe dispendioso demais para alguém que está pensando em levar a vida com seriedade, em se casar e constituir família.
Casou-se. Calcificou-se.
Se já era um homem rotineiro, depois de casado, ficou mais ainda. De casa para o escritório, do escritório para casa, nunca saía, não queria mais ouvir falar de cinema ou de futebol e os amigos...
Ora... Maciel não via mais nenhuma graça em ficar conversando horas seguidas, falando sobre mulheres — ele tinha a sua e estava tão satisfeito com ela! — ou sobre política — um tema de que jamais gostara.
Como seria de se esperar com uma vida assim, Rosana logo engravidou e pouco menos de um ano após o casamento, punha no mundo um belo rebento, um Macielzinho que era o orgulho do pai e o desespero da mãe, pois era esta que lhe trocava as fraldas.
Um dia, Maciel chegou com a notícia: tinha sido transferido para o Rio de Janeiro, com um salário quase três vezes maior.
Estava radiante! E, mais alegre ainda, ficou Rosana. Afinal, ela sempre quisera morar no Rio de Janeiro, sempre se encantara com a Cidade Maravilhosa...
Só que havia um pequeno problema. No início, a vida de Maciel seria um pouco agitada demais. Nos três ou quatro primeiros meses estaria percorrendo as sucursais da empresa em várias cidades fluminenses, vistoriando suas escritas e, com isso, ficaria às vezes, uma semana inteira fora de casa. Talvez até mais, pois poderia precisar ir de uma cidade para outra sem nem ao menos voltar para o Rio de Janeiro.
Assim, como não queria que Rosana ficasse muito sozinha, sua irmã, Margarida, iria com eles e, enquanto Maciel estivesse viajando, ela poderia fazer companhia à sua esposa. É claro que Rosana não achou muita graça no fato do marido ter de viajar tanto assim, mas como era para o bem de toda a família, acabou se calando e só reclamou durante alguns dias. Depois, acostumou-se com a idéia e a aceitou.
Mudaram-se para o Rio de Janeiro, para um bom apartamento em Ipanema, o aluguel pago pela firma.
Maciel começou sua maratona: Campos, Bom Jesus, Petrópolis, Três Rios, Resende... Uma porção de cidades. Ficava três, quatro dias em cada filial e, como trabalhava rápido, sempre arrumava um jeito de voltar para casa, sempre conseguia passar o fim-de-semana ao lado de sua Rosana.
Tudo corria bem na vida da família. Margarida, sua irmã, estudava à noite e, durante o dia, ajudava Rosana com os afazeres domésticos, inclusive levando o pequeno Maciel para a praia, para o menino tomar sol e brincar.
Rosana, já por natureza, uma bela mulher, florescera. O clima e o encanto do Rio de Janeiro penetraram-lhe pelos olhos, pelas curvas do corpo gracioso, fazendo com que ficasse ainda mais bonita e desejável.
E Maciel, trabalhando, progredindo sempre, recebendo elogios da Matriz, recebendo aumentos de salário e, obviamente, de serviço. Chegava a passar quinze dias sem poder voltar para casa, tal a quantidade de problemas para resolver nas cidades do interior, tal a carga de responsabilidade que lhe pesava nas costas.
Não tinha telefone em casa e, por isso, não lhe era possível saber notícias todos os dias.
O que, de uma certa forma, foi até melhor...
Enquanto Maciel queimava fosfato em cima de números e verificações, Rosana, na praia, queimava sua pele e ajudava a queimar os fusíveis do coração de certo engenheiro que, morando ali perto, aproximara-se, conversara e sempre estava à sua disposição para o que quer que ela pudesse vir a precisar.
Tantas vezes o cântaro vai à fonte que um dia, ele quebra...
E, com Rosana, não foi diferente.
Uma manhã, Rosana estava indo para a praia, quando o tal engenheiro apareceu, materializou-se, ao seu lado:
— Vai à praia?
Rosana não pode deixar de sorrir. Era mais do que evidente que ela estava indo à praia, afinal de contas, com toda a certeza não iria à Missa assim, de maiô!
Seguiram juntos, conversando, ela comentando que já estava ficando cansada daquela história do marido estar sempre viajando, deixando-a constantemente sozinha.
— Ele está mais tempo fora do que dentro de casa! — terminou.
Bom carioca, desses que não perdem uma só oportunidade, o engenheiro — Mauro era o seu nome — apanhou o fio e começou a tecer a sua malha, batendo e rebatendo sobre o tema “solidão insuportável”.
Acabou praticamente se convidando para lhe fazer companhia à noite, enquanto Margarida estivesse na escola.
E assim acabou acontecendo.
Margarida, de namoricos com um colega, atrasou-se. Mauro aproveitou e...
Houve a primeira vez.
Na matemática, depois do um, vem sempre o dois. No amor, especialmente no amor proibido, depois da primeira vez, vem sempre a segunda, a terceira, a quarta, a enésima. Afinal, o amor proibido acaba por se transformar num vício mais sério que o mais pesado dos tóxicos... E, o que é pior, acaba por deteriorar o amor primeiro, aquele do papel passado em cartório e abençoado na igreja.
De repente, Rosana se descobriu não mais suportando o marido, mesmo nas poucas horas em que ele conseguia ficar em casa.
Tentou disfarçar, mas muito depressa compreendeu o quanto é difícil e complicado esconder o desamor.
Não tinha como dizer uma palavra carinhosa para o marido, não havia como deixar de transparecer sua insatisfação. Procurava ficar o mais longe dele que pudesse e, à noite, era uma autêntica artista em matéria de arranjar desculpas para se recusar.
Até que um dia, o inevitável flagrante aconteceu.
Maciel teve um problema com o automóvel e, tendo saído de casa logo após o almoço para ir a Campos numa viagem programada para dez dias, decidiu voltar e seguir na manhã seguinte. Passaria mais uma noite em casa e isso não era nada ruim.
Assim, pouco antes de nove horas da noite, chegou à sua casa.
Ingênuo, nada tinha percebido de anormal, até então, no comportamento da esposa e, assim, imaginava que esta fosse ficar alegre ao vê-lo, que fosse sorrir e, toda satisfeita, se dispusesse a lhe preparar o jantar, ainda que fora de hora.
Meteu a chave na fechadura e entrou.
A cena que presenciou prostrou-o, pregado ao chão com o queixo a lhe bater pelo meio do peito, a alma em frangalhos.
Não podia ser verdade...
Não podia acreditar no que seus olhos estavam vendo.
Rosana, nua, ainda estava enroscada no colo de um homem, também nu...
Um homem que não era ele, nem sequer parecido.
Os dois, ao perceberem a presença de Maciel, tiveram a reação mais do que esperada de se esconderem, de tremer, de dizer o famoso “posso explicar tudo”...
Mas, Maciel não queria explicações.
Não precisava de explicações.
Ele não disse nada, não fez nada.
Apenas olhou.
Rosana e o engenheiro Mauro entenderam.
Era a rendição que Maciel estava assinando com as lágrimas que lhe escorriam pelas faces.
Sempre em silêncio, fez meia-volta e deixou a casa. Perambulou pela cidade como um autômato e a manhã foi encontrá-lo caído em um banco em Laranjeiras, perto do Palácio do Governo, ainda bêbado.
Desde esse dia, nunca mais aprumou.
Bebendo sempre, cada vez mais, acabou por sublimar a traição, mas em troca, perdeu o emprego, os amigos, o dinheiro.
Talvez até tivesse esquecido a esposa, mas jamais poderia esquecer o que acontecera, jamais deixaria de lembrar daquela cena.
E bebeu... Bebeu como uma esponja por quase trinta anos.
Agora, no final da vida, de uma vida que fora destruída logo em seu começo, ele sentou na beira da cama e disse para o médico:
— Sabe, doutor... quando eu trabalhava como contador, lá em Osasco tinha um salão de sinuca... Ah! Que tempinho gostoso...!

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