A umidade típica de São Paulo parece entrar pelos ossos dando uma sensação de frio e, ao mesmo tempo, um agradável repouso para os pensamentos.
Não sei a razão, mas gosto de deixar a mente voar nessas noites paulistanas úmidas e frias. Talvez por que esse tipo de clima se identifica muito com a melancolia que me invade a alma de vez em quando...
A madrugada avança e eu olho a rua, debruçado na janela de meu apartamento.
Impossível dizer no que penso, talvez na má qualidade do uísque de algumas horas atrás, naquela festa, talvez nos olhos – ou nas curvas – da morena com quem tinha conversado uma boa parte da noite, logicamente sem chegar a nada. Talvez pense em como estou cansado desse tipo de vida e em como seria bom mudar, alterar tudo, recomeçar com outra filosofia, com outros objetivos, em outro lugar, com outras pessoas...
De qualquer maneira, estou melancólico, nostálgico, enfim, um poço de tristeza.
É julho e, neste mês, todos os meus conhecidos e pseudo-amigos tiram férias. Eu fui obrigado a ficar na Metrópole por causa de um negócio que não se resolveu ainda, à espera de uma resposta que está demorando demais a chegar...
À hora do jantar, pelo telefone, transportara-me espiritualmente para minha cidade de interior e, talvez... ainda não tivesse conseguido voltar. O que só servia para me deixar ainda mais deprimido e, como se costuma dizer, na fossa.
Olho pela janela, sinto o vento frio da madrugada em meu rosto, vejo a mulher lá em baixo.
A mesma mulher que eu tenho visto todas as noites, não importa se é ou não final ou meio de semana, não interessa se faz calor ou frio, se chove ou se a Lua paulistana, tímida e embaçada, tenta desesperadamente vencer a poluição para trazer para as calçadas da Megalópole, pelo menos um pouco de romance e, com certeza, muitas recordações.
A mulher faz parte da paisagem juntamente com os postes, as árvores e as latas de lixo. Anda de um lado para o outro, balançando sua bolsinha de miçangas, com as pernas muito à mostra, com um caminhar bamboleante e provocador, mesmo que não haja viv'alma na rua.
Deve ser uma trabalhadora exemplar: não está se importando com o avançado da hora, com o vento ou com a umidade.
Seu único objetivo é fazer algum dinheiro.
É trabalhar, enfim.
Essa mulher, pobre mulher, trabalha nesta noite.
Com certeza, está rodando a bolsinha de uma esquina para a outra, ali na rua Piauí, por várias e várias horas, caçando, caçando...
Possivelmente em sua casa – que, aposto, não é mais do que um quarto infecto em algum cortiço, isso se não for um barraco miserável em uma favela qualquer – uma criança está chorando de fome, pedindo um pouco de leite, meio copo de carinho.
Ela não sabe fazer mais nada, não tem idéia de cozinha – como pode saber cozinhar, alguém que jamais teve uma panela cheia em sua casa? – de escritório ou de qualquer outra coisa. O máximo que sabe é aquilo que a fez gerar esse pequenino ser que agora chora e pede.
E ela precisa dar.
Dar para sua criança, dar por sua criança.
E lá está a mulher, andando de um lado para o outro, incessantemente, incansavelmente.
Quando vê que um automóvel se aproxima, seu andar fica mais sedutor, seus movimentos tornam-se mais sensuais e provocantes. Chego a escutar, de minha janela, o chocalhar das contas de sua pulseira.
Que terrível necessidade, que imperioso apelo a faz se portar assim!
E, pior ainda, imaginar que ela não pode dividir esse desespero com ninguém!
Ao encontrar um parceiro, melhor dizendo, um freguês, ela precisará sorrir, terá de fingir...
E haverá algo mais difícil do que fingir o prazer, do que fingir o amor?
Ela não poderá dizer que sua criança está com fome em casa e que ela está na rua a essa hora por que precisa, agora e já, de dinheiro para comprar leite, para manter viva aquela coisinha que ela mesma jamais soube quem foi o pai – ou será que sempre soube?
Alguém pára ao seu lado e ela, com o andar mais provocante do que nunca, se aproxima. Encosta-se à janela do carro e, após alguns instantes, o automóvel parte e ela fica.
Provavelmente, o motorista não aceitou o preço.
— Puta sim, mas com algum valor, seu desgraçado! — grita ela, quando o carro já está perto da outra esquina.
Não consigo entender direito o rosário de palavrões que ela desfia em seguida e, no íntimo, acho que aquele motorista bem que os mereceu.
Afinal de contas, ela é uma pessoa humana, tem de ter algum valor! Mesmo que considerada como uma mercadoria, tem todo o direito de se sentir desprezada, desvalorizada.
E de se ofender com isso, ora bolas!
O sinal da Avenida Angélica abre, um outro automóvel avança e pára.
O motorista a chama, do lado de lá da rua.
Ela, pressurosa, atravessa para ir ao encontro, talvez, de um litro de leite para seu filho.
Nisso, vindo pela contra-mão, um outro carro, em grande velocidade, entra na rua Piauí.
Pisca os faróis e acelera.
A moça está bem no meio do leito carroçável, estaca, olha para o veículo que avança, tenta recuar, hesita, atrapalha-se com o sapato de salto alto, dá um passo para a frente, um de seus sapatos lhe sai do pé e...
Ela é atropelada.
O impacto, fortíssimo, atira-a longe.
Ela cai, desengonçada, sem um grito, sem mais um movimento.
O automóvel não pára...
Acelerando mais ainda, ele entra pela Avenida Angélica e desaparece.
O outro carro, cujo motorista a chamara, também trata de se fazer ao largo, descendo pela rua Itacolomy, os pneus cantando na esquina, tal a pressa que ele tem em deixar aquele local.
E ela fica ali, estatelada nos paralelepípedos da rua...
Uma boa alma pára, pega a moça e leva-a antes mesmo que eu possa me refazer do susto.
Vejo-a ser colocada dentro do carro, mole, sem vontade própria.
A rua fica, outra vez, deserta.
De minha janela, olho a madrugada, fria e úmida, a garoa transformada em chuva miúda, esse tipo de chuva que molha tudo.
Que molha até à sola, o sapato de salto alto que a moça esqueceu no meio da rua...
Não sei a razão, mas gosto de deixar a mente voar nessas noites paulistanas úmidas e frias. Talvez por que esse tipo de clima se identifica muito com a melancolia que me invade a alma de vez em quando...
A madrugada avança e eu olho a rua, debruçado na janela de meu apartamento.
Impossível dizer no que penso, talvez na má qualidade do uísque de algumas horas atrás, naquela festa, talvez nos olhos – ou nas curvas – da morena com quem tinha conversado uma boa parte da noite, logicamente sem chegar a nada. Talvez pense em como estou cansado desse tipo de vida e em como seria bom mudar, alterar tudo, recomeçar com outra filosofia, com outros objetivos, em outro lugar, com outras pessoas...
De qualquer maneira, estou melancólico, nostálgico, enfim, um poço de tristeza.
É julho e, neste mês, todos os meus conhecidos e pseudo-amigos tiram férias. Eu fui obrigado a ficar na Metrópole por causa de um negócio que não se resolveu ainda, à espera de uma resposta que está demorando demais a chegar...
À hora do jantar, pelo telefone, transportara-me espiritualmente para minha cidade de interior e, talvez... ainda não tivesse conseguido voltar. O que só servia para me deixar ainda mais deprimido e, como se costuma dizer, na fossa.
Olho pela janela, sinto o vento frio da madrugada em meu rosto, vejo a mulher lá em baixo.
A mesma mulher que eu tenho visto todas as noites, não importa se é ou não final ou meio de semana, não interessa se faz calor ou frio, se chove ou se a Lua paulistana, tímida e embaçada, tenta desesperadamente vencer a poluição para trazer para as calçadas da Megalópole, pelo menos um pouco de romance e, com certeza, muitas recordações.
A mulher faz parte da paisagem juntamente com os postes, as árvores e as latas de lixo. Anda de um lado para o outro, balançando sua bolsinha de miçangas, com as pernas muito à mostra, com um caminhar bamboleante e provocador, mesmo que não haja viv'alma na rua.
Deve ser uma trabalhadora exemplar: não está se importando com o avançado da hora, com o vento ou com a umidade.
Seu único objetivo é fazer algum dinheiro.
É trabalhar, enfim.
Essa mulher, pobre mulher, trabalha nesta noite.
Com certeza, está rodando a bolsinha de uma esquina para a outra, ali na rua Piauí, por várias e várias horas, caçando, caçando...
Possivelmente em sua casa – que, aposto, não é mais do que um quarto infecto em algum cortiço, isso se não for um barraco miserável em uma favela qualquer – uma criança está chorando de fome, pedindo um pouco de leite, meio copo de carinho.
Ela não sabe fazer mais nada, não tem idéia de cozinha – como pode saber cozinhar, alguém que jamais teve uma panela cheia em sua casa? – de escritório ou de qualquer outra coisa. O máximo que sabe é aquilo que a fez gerar esse pequenino ser que agora chora e pede.
E ela precisa dar.
Dar para sua criança, dar por sua criança.
E lá está a mulher, andando de um lado para o outro, incessantemente, incansavelmente.
Quando vê que um automóvel se aproxima, seu andar fica mais sedutor, seus movimentos tornam-se mais sensuais e provocantes. Chego a escutar, de minha janela, o chocalhar das contas de sua pulseira.
Que terrível necessidade, que imperioso apelo a faz se portar assim!
E, pior ainda, imaginar que ela não pode dividir esse desespero com ninguém!
Ao encontrar um parceiro, melhor dizendo, um freguês, ela precisará sorrir, terá de fingir...
E haverá algo mais difícil do que fingir o prazer, do que fingir o amor?
Ela não poderá dizer que sua criança está com fome em casa e que ela está na rua a essa hora por que precisa, agora e já, de dinheiro para comprar leite, para manter viva aquela coisinha que ela mesma jamais soube quem foi o pai – ou será que sempre soube?
Alguém pára ao seu lado e ela, com o andar mais provocante do que nunca, se aproxima. Encosta-se à janela do carro e, após alguns instantes, o automóvel parte e ela fica.
Provavelmente, o motorista não aceitou o preço.
— Puta sim, mas com algum valor, seu desgraçado! — grita ela, quando o carro já está perto da outra esquina.
Não consigo entender direito o rosário de palavrões que ela desfia em seguida e, no íntimo, acho que aquele motorista bem que os mereceu.
Afinal de contas, ela é uma pessoa humana, tem de ter algum valor! Mesmo que considerada como uma mercadoria, tem todo o direito de se sentir desprezada, desvalorizada.
E de se ofender com isso, ora bolas!
O sinal da Avenida Angélica abre, um outro automóvel avança e pára.
O motorista a chama, do lado de lá da rua.
Ela, pressurosa, atravessa para ir ao encontro, talvez, de um litro de leite para seu filho.
Nisso, vindo pela contra-mão, um outro carro, em grande velocidade, entra na rua Piauí.
Pisca os faróis e acelera.
A moça está bem no meio do leito carroçável, estaca, olha para o veículo que avança, tenta recuar, hesita, atrapalha-se com o sapato de salto alto, dá um passo para a frente, um de seus sapatos lhe sai do pé e...
Ela é atropelada.
O impacto, fortíssimo, atira-a longe.
Ela cai, desengonçada, sem um grito, sem mais um movimento.
O automóvel não pára...
Acelerando mais ainda, ele entra pela Avenida Angélica e desaparece.
O outro carro, cujo motorista a chamara, também trata de se fazer ao largo, descendo pela rua Itacolomy, os pneus cantando na esquina, tal a pressa que ele tem em deixar aquele local.
E ela fica ali, estatelada nos paralelepípedos da rua...
Uma boa alma pára, pega a moça e leva-a antes mesmo que eu possa me refazer do susto.
Vejo-a ser colocada dentro do carro, mole, sem vontade própria.
A rua fica, outra vez, deserta.
De minha janela, olho a madrugada, fria e úmida, a garoa transformada em chuva miúda, esse tipo de chuva que molha tudo.
Que molha até à sola, o sapato de salto alto que a moça esqueceu no meio da rua...
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